quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


 
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TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Les empêcheurs de penser en rond/Seuil. Paris. 2001.
TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871].



13-  Que me seja permitido, aqui, simplesmente repetir um trecho de uma nota anterior.

-           “Se há fumaça, há fogo. Se na relação indiciária o que entra em questão é a contiguidade entre sinal e objeto, a crítica ao fetichismo como fórmula do mal-entendido, ou de um mau hábito de pensamento, está em extrapolar uma relação de contiguidade a toda uma cadeia causal maior e mais sutil. Este erro faz com que todos os que o cometam estejam, digamos, na infância da razão o que significa que a racionalidade e a irracionalidade são ambas potências de casa ato de juízo e que, com a finalidade do seu melhor desenvolvimento – Primitive Culture advoga em favor de uma antropologia do desenvolvimento – devem ser orientados segundo a ordem do método, a uma espécie de administração tutelar:

The Maori may give a sample of the character of its rules: they hold it unlucky in an owl hoots during a consultation, but a council of war is encouraged by prospect of victory when a hawk flies overhead; a flight of birds to the right of the war-sacrifice is propitious if the villages of the tribe are in the quarter, but if the omen is in the enemy direction, the war will be given up.”(Tylor, 1873:108)

O vôo do falcão é índice de um certo futuro emitidos desde o presente àquele que testemunha, transmitido desde alhures. A crítica que a antropologia contemporânea poderia fazer a esta passagem, e a todas as demais, culminaria em super-inflar o problema do contexto, fazendo com que os requisitos de uma teoria do conhecimento baseado no conceito de representação como duplo das séries empíricas apreendidas pelos órgãos dos sentidos e organizadas conceitualmente sofram de hipertrofia. Dito de outra forma, Tylor estaria agindo como os primitivos que ele classifica como tal ao isolar toda uma relação possivelmente complexa entre os maori e as corujas, considerando-a um erro de atribuição reduzindo causalidade às relações de caráter indiciário. Assim, relações de caça, orientação meteorológica, espacial que seguramente compreendem um complexo de relações entre corujas e maori – e o contrário – não estariam sendo considerados. Grande parte do esforço etnográfico comprometido com a temática do realismo da descrição etnográfica persiste na tarefa, para todos os efeitos ética, em descrever com vistas em dizer e comprovar que o primitivo vitoriano – algo semelhante ao religioso dos libertinos – não existe. Contudo, o primitivo é algo mais difícil de capturar porque ele sempre tende a ser alguma outra coisa.”(9)

O jornal é o meio que pensa para o leitor. Não somente reporta eventos que, uma vez acontecidos são considerados pertinentes à comunidade de assinantes e leitores – o que é um problema retórico, pois o jornal não é necessariamente redigido pensando em pensar para os leitores acidentais -; o jornal publica tendências, aponta o futuro por via de técnicas diversas. Uma delas é exatamente a estatística, que cumpre a função de avisar sobre os perigo iminentes.

As folhas públicas se transformaram socialmente então  naquilo que são vitalmente os  órgãos dos sentidos. Cada escritório de redação não será mais que um confluente de diversos escritórios de burocracia, algo semelhante à retina como feixe de nervos especiais recebendo, cada um, sua impressão característica, ou como o tímpano é um feixe de nervos acústicos. Aqui a estatística é uma espécie de olho embrionário semelhante ao dos animais inferiores que então enxergam somente o necessário para reconhecerem a aproximação de um inimigo, ou de uma presa; ainda assim, é um serviço e tanto que nos oferece vindo a nos impedir assim de correr sérios riscos.”(Tarde, 2001:195)

Assim, há o momento da produção. E então a estatística é observação, coleta de dados, registro, catalogação e organização arquivística; é também a produção de cronologia temática dispondo de sinais para a entrada e saída, a conexão com outros arquivos presididos com a mesma constância, com as mesmas escalas temporais de forma a permitirem a indução da diacronia sincronizada – a estatística é, portanto, um esforço da anulação da diferença entre o tempo estrutural e o tempo cronológico, o que só seria possível na tradução estatística de todos os tempos e de todas as coisas diluídos num mar de combinatória vindo, assim, a simular todo um mundo. No momento de produção o que vemos é um exercício impessoal de composição de tudo aquilo que mais adiante será estatística vindo a ceder, no momento de sua publicação em que a fisionomia registrada numa curva literalmente mostra a sua face, ainda que de perfil. Ver a estatística não é, em medida alguma, o mesmo que produzi-la. O ato de ver a curva implica, para aquele que vê na curva um produto estatístico, no mesmo que capturar o movimento de algo sem que seja, absolutamente, o movimento de alguém. Assim,  que se move é a criminalidade, os nascimentos, os casamentos, os suicídios. Ver as curvas sinuosas em seus movimentos bruscos repete os passos de quem observa as curvas agudas do vôo das andorinhas. Afinal, o que vemos como produto da atividade estatística é um desenho que é, também, a abertura premonitória para o futuro[1].


[1] « Pourquoi, dirais-je, les dessins statistiques tracés à longue source papier par des accumulations de crimes et de délits successifs transmis en procès-verbeaux aux parquets, des parquets, en états annuels, au bureau de statistique à Paris, et de ce bureau, en volumes brochés, aux magistrats des divers tribunaux, pourquoi ces silhouettes, qui expriment elles aussi, et traduisent aux yeux des amas et des séries de faits coexistants ou successifs, sont-elles réputées seules symboliques, tandis que la ligne tracée dans ma rétine par le vol d’une hirondelle est jugée une réalité inhérente à l’être même qu’elle exprime et qui consisterait essentiellement, ce nous semble, en figures mobiles, en mouvements dans l’espace figuré ? Est-ce que, au fond, il y a moins de symbolique que là ? Est-ce que mon image rétinienne, ma courbe graphique rétinienne du vol de cette hirondelle n’est pas seulement l’expression d’un amas de faits (les divers états de cet oiseau) que nous ‘avons aucune raison de regarder comme analogues le moins du monde à notre impression visuelle ? » (Tarde, 2001 :192)

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


 
TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Les empêcheurs de penser en rond/Seuil. Paris. 2001.


12- A sociedade como um grupo de pessoas que se entre-imitam e contra-imitam;  a matéria como extensão mediadora com propriedades ondulatórias específicas; e então, a estatística. Eis a ciência com dotada de capacidades de “1º determinar a imitação potencial própria de cada invenção em um tempo e país específicos; 2º, mostrar os efeitos favoráveis e produtos alimentados pela imitação de cada um, e por conseguinte, de influenciar aqueles que terão conhecimento destes números, segundo o pendor em seguir ou não tal ou qual exemplo.”(Tarde, 2001:170). Uma caricatura feita algo de improviso, trata-se de uma meteorologia intra-escalar em que é possível escolher entre ser e sofrer a tempestade; entre inundar e ser inundado; entre secar e ser seco. É possível, em tese, ser perigoso, evitar o perigo, ou assumir certos riscos – neste caso, a única forma em que o risco de ser perigoso diminui em alguma medida.  De forma definitiva, constatar ou influenciar as imitações, eis todo o objeto das pesquisas do gênero que, todavia, participa do empreendimento de intuir o tempo futuro. E aqui o paralelo entre arqueologia e a estatística feita por Tarde merece atenção, dado que cada uma delas visa atingir o ponto em que tudo se transforma em indistinção do ponto de vista da outra.
            A arqueologia, a mesma que oferece horizonte da antropologia de Tylor, busca o detalhe individual da forma, um complexo restrito de um movimento morto que somente ressoa por via de fragmentos, ou de um mesmo ou de vários objetos que sugerem a relação invenção-imitação da enorme cadeia difusora do globo terrestre. Ao chamar o perfil estatístico de curva hieroglífica, Tarde sugere que a relação do estatístico com a curva derivada dos dados que descrevem o nexo invenção-imitação em um dado eixo de espaço e tempo é da quem se relaciona com um dado arqueológico. As curvas são “pitorescas e bizarras como o perfil das montanhas” e, com maior frequência, “sinuosas e graciosas como as formas da vida” vindo a induzir àquele que a decifra uma noção aproximada de tempo futuro.

            As linhas das quais trato são sempre ou montantes, ou horizontais ou descendentes, ou bem, se são irregulares, sempre se pode decompô-las da mesma maneira em três sortes de elementos lineares: escarpados, platôs e declives. Foi a partir da escola de Quételet que o platô serviria como estadia eminente do estatístico pois sua descoberta seria seu triunfo mais belo, devendo ser sua aspiração constante. Nada mais adequado na fundação da Física Social que a reprodução uniforme dos mesmos números, não somente os de nascimento e casamentos, mas de crimes e processos durante um período de tempo considerável. Daí a ilusão (dissipada, é verdade, depois, pela derradeira estatística oficial sobre a criminalidade progressiva do último meio-século) de pensar que os últimos números se reproduzirão efetivamente e com uniformidade.”(Tarde, 2001:173)

            Esta reflexão, que não parece apontar para outra coisa senão para hábitos de pensamento adquiridos pelo efeito tranquilizante de uma linha que aponta para o futuro, recupera o caráter de erro de atribuição que tantas vezes já visitamos aqui e que parece inescapável. No caso é a uniformidade do desenho, o platô que não termina pois o limite da curva é o tempo presente, sugere na mente do estatístico, que está procurando se haver com leis da regularidade, uma constante elaborada na forma de tendência ou probabilidade acentuada. Mas este não é outro senão o seu efeito, igualando a forma com o dado – mais uma vez, produzindo uma zona, uma região de indiferença. Isto porque o artefato que desenha a ordem numérica de propagação é ele mesmo um artefato de propagação e um dado difusor da imagem.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


 
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix (1996) Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 2), São Paulo, 34. 

TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Les empêcheurs de penser en rond/Seuil. Paris. 2001.



11-  Passemos a considerar os meios de propagação e então teremos que considerar o corpo humano como, ele mesmo, um ambiente, um meio, segundo reza a reflexão acerca da fisiologia de Claude Bernard. Assim, se no que tange o problema da economia moral em que a discussão a respeito da função social das esferas da vida, como a religião, se pauta em grande medida sobre a relação entre o indivíduo moral e a organização social que se impõe ao mesmo indivíduo em uma malha coercitiva. As considerações a respeito dos meios de propagação comunicativa da imitação social, como a proposta por Tarde,  tem como objeto o borramento das fronteiras  em questão, a saber, entre o social e o individual e, por conseguinte, fazendo da sociedade uma caixa de ressonância que atinge escalas infinitesimalmente pequenos e infinitesimalmente grandes. Ainda que mobilizado por meio de forças psíquicas sem as quais nenhum argumento poderia fazer sentido, a discussão acerca da economia moral tem um fator determinante que marca a exterioridade da sociedade a qual, na versão sonambúlica de Gabriel Tarde, encontramos uma variação temática enorme a respeito sobre qual é o continente e qual seria o conteúdo impedindo a estabilidade de qualquer forma de exterioridade. Na verdade, muito pelo contrário, só o que está dentro importa.
            É importante ressaltar não haver na epiderme das relações qualquer fronteira em que o Estado-nação seja, na medida da doutrina sobre os dois corpos do rei, um análogo perfeito do corpo tal como inventara a criação fisiocrata. O que importa é compreender como a ressonância se dá, por quais meios, com qual intensidade e extensão, não importando a priori a imposição das zonas limítrofes do território, como aqueles que demarcariam a existência da Nigrícia como zona bárbara para além do Mediterrâneo. Tarde parte da premissa de que o social é parte constituinte das repetições ondulatórias daquilo que é vital e, não podendo agir por meios exclusivamente sociais (relativos à ordem moral da morfologia dos agrupamentos e seus direitos constituídos), opera segundo a materialidade que lhe é própria sem com isso induzir a nenhuma forma de materialismo. Um mesmo terremoto cujo epicentro seja o mar Mediterrâneo ondula tanto na face africana quanto na face européia da sua costa, ainda que de forma desigual.
           
            Creio me conformar, (...) ao método científico mais rigoroso ao buscar esclarecer o complexo pelo simples, a combinação pelo elemento e a explicar o liame social misturado e complicado, segundo nós o conhecemos, por via do ambiente social mais puro e reduzido à mais simples expressão a qual, por instrução do sociólogo é realizada com sucesso no estado sonambúlico.” (Tarde, 2001:136)

            E mais adiante:

            Suponha um homem que, subtraído hipoteticamente de toda influência extra-social, em contato direto com os objetos naturais, em meio às obsessões espontâneas dos seus diversos sentidos sem travar comunicação senão com seus semelhantes  ou, então, como somente um dos seus semelhantes, para simplificar a questão. Não seria então recomendável estudar justamente este sujeito de escolha, por experiência e observação, em suas características verdadeiramente essenciais quanto às relações sociais, desembaraçado assim de toda e qualquer influência das ordens física e naturais próprias a lhe complicarem? Mas o hipnotismo e o sonambulismo não são eles precisamente a realização desta hipótese?”(Tarde, 2001:136-137)

            Nem anormal, tampouco condição limite. Na verdade, mais uma variação do tema “idéias sugeridas que se crêem espontâneas” uma vez que a sociedade propaga a ilusão de repetição em um mecanismo similar, ou mesmo idêntico àquele estabelecido pelo magnetismo animal – não tratando aqui o conceito de ilusão com o de mentira, o que talvez possa ser melhor descrito pelo conceito redundante de fazer-fazer (Deleuze & Guattari, 1996) que é, notemos bem, uma repetição ele mesmo e que não denuncia senão o tipo de movimento próprio ao que se passa, por exemplo, no exercício da intimidação. Eis a situação na qual o intimidado  escapa de si mesmo de forma a ser manipulável e maleável pela ação de outrem ainda que tente resistir que é, de qualquer forma, assaz similar ao estado sonambúlico; e à imitação da linguagem primitiva que não faz outra coisa senão se repetir, o que é próprio do domínio da estatística, por sinal.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

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ANDRIOPOULOS, Stefan. Possuídos: crimes hipnóticos, ficção corporativa e invenção do cinema. Contraponto. Rio de Janeiro. 2013. 

DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. Perspectiva. São Paulo. 1999.

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TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Les empêcheurs de penser en rond/Seuil.
Paris. 2001.

TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]


10- A figuração do primitivo, do selvagem não se dá sem que lhe seja circunscrito seu ambiente propício com relação ao qual não cabe qualquer unanimidade. Afinal, ao primitivo pode ser reputada uma enorme distância, uma enorme diferença na constituição de sua raça, de seu espírito e, todavia, pode se mover num átimo para encarnar no vizinho ao lado. Não basta, obviamente, reduzir o diabo da selvageria a uma mera disputa em que o selvagem é categoria de acusação, o que parece ser suficiente desde uma certa sociologia em que os hábitos adquiridos servem como fatores suficientes de distinção. Há uma outra dimensão relativa a este universo na qual atenta-se para a possibilidade do selvagem atender ao chamado que o vocábulo transmite. Se o selvagem responde ao apelo feito por terceiros, à selvageria.
            Entendendo que a linguagem em seu estado primitivo carrega, segundo a tese de Tylor (e De Brosses) numa mimese de caráter onomatopaico-imitativa, a figura do primitivo como imitador é extremamente sugestiva, para não dizer que é definitiva na imaginação a respeito do tema em diversas inventivas produzidas desde o alvorecer da sociedade industrial. De uma forma ou de outra, a configuração da língua em estado selvagem caracterizada como sentido em um estágio imitativo, isto é, possuído pela coisa sem que possa operar como propriamente como linguagem, mas como uma dimensão reduzida da mesma. Afinal, grande parte da caracterização da linguagem em seu caráter evolutivo se presta ao acompanhamento da ampliação da capacidade abstrativa que ela opera vindo a conseguir atingir propriedades combinatórias de mais a mais sofisticadas. O primitivo parece ser aquele que, à forma dos idiotas dos monastérios e da idiotia de uma forma geral, não exerce cidadania neste território e que, estando sujeito à tutela de outrem, age como se estivesse fora de si. Possuído.
            O livro de Stefan Andriopoulos (2013) oferece, no que tange ao tema da possessão, algo tão sintomático quanto interessante porque demanda um esforço um tanto quanto contra-intuitivo pois não participa compartilha do hábito em remeter os problemas relativos à possessão ao material oriundo de viagens de exploração ou outras fontes das pesquisas etnológicas. Isto quer dizer que ao fazer, aponta para uma outra direção, o que parece mais ou menos obrigatório quando o tema é nada mais, nada menos que a sujeição a uma vontade alheia, o tema clássico das teorias da dominação expressas, primeiramente, no domínio do direito processual criminal. Isto porque, como bem sabemos desde a consolidação da moral libertina, toda ação de tipo direct symbol (Tylor, 1873) implica um símbolo diretor, em geral articulado por um mediador sacerdotal que assume funções políticas – com ênfase no termo funções, pois faz parte de um dos planos em que a linguagem funcional localiza a religião; o outro é, como se sabe, a teoria do conhecimento.
            Em grande parte, a sociologia e o pensamento social de uma forma geral repercutem em grande parte este tipo de preocupação relativa às agências invisíveis de pessoas jurídicas conformadas em crimes de responsabilidade cujo enquadramento legal é sempre tão escorregadio, especialmente no que tange os efeitos das pessoas jurídicas e demais pessoas de ficção.

            Quando o estudo sociológico de Durkheim intitulado As formas elementares da vida religiosa (1912) descreveu o “mana” como uma “força difusa e anônima” – a um tempo ubíqua e intangível -, o texto durkheimiano formulou, concomitantemente, uma teoria social que era pertinente não apenas às sociedades “primitivas”, mas também aos modernos agregados corporativos e seus efeitos nas pessoas físicas. Durkheim enfatizou que as forças de coesão social funcionam através de “mecanismos psíquicos” complexos que não são externos ao sujeito, mas o captam por dentro. Depois de participar de diversos experimentos hipnóticos, o pobre sapateiro Mollinier acreditou estar sob a influência irresistível de um ser estranho e invisível. Ao mesmo tempo, o jurista von Gierke descreveu a “vida psíquica” do membro da corporação como “determinada pela força abrangente de um agregado espiritual organizado, que funciona dentro do indivíduo”. Como declarou Durkheim, com imagens semelhantes às alucinações de Mollinier e à conceituação gierkiana do membro corporativo “possuído”: “Visto que a pressão social se faz sentir por meio de canais mentais, era fatal que ela desse ao Homem a ideia de que existem fora dele uma ou várias forças, morais, poderosas, à quais ele está sujeito. Dado que tais forças lhe falam em tom de ordem e, vez por outra, até o mandam violar suas inclinações mais naturais, o ser humano estava fadado a imaginá-las externas a si mesmo””. (Andriopoulos, 2013:17-18).

            O que Andriopoulos afirma é que as formas de descrição de coesão social, uma das funções basilares da moral na qual a religião fora convertida, em geral são veiculadas pela fórmula de uma força externa que entra em nós – no que pese a devida locução do sociólogo com seu leitor. Gabriel Tarde também produz uma figura particular na qual o homem social é sonâmbulo cujo estado hipnótico é própria às formas de sonho que se correspondem às teorias médicas da Escola de Nancy, plano no qual não há distinção entre sociedades modernas e primitivas. Neste ponto, o argumento de Tarde interessa de sobremaneira, pois ao traduzir o problema por via de uma indiferença – ou equivalência - relativa entre modernos e primitivos, o termo problemático é, obviamente, o de sociedade.

            Diríamos então, agora e com uma largueza ainda maior, que uma sociedade é um grupo de pessoas (gens) que apresentam entre si grande quantidade de semelhanças produzidas, ou por imitação ou por contra-imitação. Isto porque os homens se contra-imitam bastante e sobretudo quando não tem a modéstia de simplesmente imitar e tampouco a força para inventar; no ato da contra-imitação, isto é, tanto ao fazendo e dizendo precisamente o que fazemos ou o que dizemos acerca deles, ambos seguem se assimilando cada vez mais. Após a conformação dos usos correlatos a velórios, casamentos, cerimônias, visitas, polidez, não há nada de mais imitativo que lutar contra o seu próprio pendor de seguir essa corrente e com efeito, subi-la. Na idade média mesmo, a missa negra nasce de uma contra-imitação da missa católica. – Em sua obra sobre a Expressão das emoções, Darwin estabelece, com razão, um grande espaço à necessidade de contra-exprimir.”(Tarde, 2001:49)

            Tarde oferece, assim, a imagem que correlaciona a imitação à ondulação dos corpos brutos oferecendo assim uma noção pela qual a sociedade como corpo de imitações age por propagação, e não por reprodução como determina, por exemplo, a concepção de comunidade moral presente na sociologia de Durkheim. A imitação é uma geração à distância (Tarde, 2001:94) da mesma forma que a matéria que medeia é condutora da relação posta cuja distância é tão variável quanto variam as propriedade do sinal emitido e dos meios pelos quais o sinal se propaga. Neste sentido a lógica que opera é a mesma lógica da difusão cujos rastros tento perseguir, tão importante para que o fetiche seja condutor de um tempo propriamente arqueológico no qual possa carregar as marcas do tempo de sua origem permitindo datar a distância que o tempo e seus modos impõe.
            O caso é que difusão, seguindo as orientações de Tarde, é uma outra coisa – o que culmina em dizer que são outras coisas que produzem difusão; é uma outra noção de objeto portador de diferenças. Assim, um dado objeto não é índice de uma diferença que traduz uma proximidade maior ou menor com a origem, mas signos da extensão de uma ressonância que segue eficaz – como no que escreve sobre os manuscritos da República de Cícero em que é ressaltado o processo químico-histórico que conduz o documento até o presente momento (1890, no caso) que participa plenamente do desejo de imitar a grandeza do mesmo Cícero. É a permanência, ou mesmo a insistência (Deleuze, 1999) de Cícero num manuscrito que está em questão, transformando o fetiche paulatinamente em outra coisa e, com isso, localizando o primitivo em outras paisagens.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.

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REICHLER, Claude. L’age libertin. Minuit. Paris. 1987.

STRATHERN , Marilyn. Fora de Contexto: as ficções persuasivas da antropologia in O efeito etnográfico. Cosac & Naify. São Paulo. 2014.

TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development f mythology, philosophy, religion, language, art and custom. John Murray. Londres. 1873 [1871]


9- Claude Reichler, historiador e crítico que redigiu L’age libertin, publicado pela Minuit em 1987 faz uma censura severíssima ao exercício que pretendia fazer e que, todavia, o fiz. Esta longa exposição a respeito do estabelecimento do conceito de fetiche por Charles De Brosses se trata, no final das contas, de um desdobramento da citação elogiosa que Tylor emprega em seu Primitve Culture, no capítulo sobre linguagem emocional e imitativa. Num lapso chego a sugerir que há algo de libertino no argumento de Tylor. Ora,

Après Sade, après la Révolution, il n’y a plus de libertins ; avant les philosophes padouans, avant Calvin, il n’y en a pas encore. Mais, à l’intérieur des limites étroites de ces quelque deux siècles, quelle dispersion, que ensemencement de champs divers, quelle multitude de manifestations ! A ma connaissance, aucune hypotèse n’a pas encore été proposée, qui permettrait d’expliquer la brève durée historique et la prolifération des témoignages dans la socio-culture. » (Reichler, 1987 :08)

Esta seria, portanto, a hipótese do livro que defende haver uma antropologia libertina radical que não fora transmitida para além do processo revolucionário e que qualquer reminiscência libertina não se daria senão pela forma de ruínas; ou, digamos, sobrevivência. Acho que teremos que nos contentar com isto ou, mais do que qualquer outra coisa, sentir algum alívio por Tylor ser de alguma forma uma prova viva de seu próprio argumento. Se eu for seguir com a trilha que nos levaria à sua antropologia libertina, não o faremos senão na forma de uma trilha falsa ou então em quem comete um erro de atribuição torcendo para com isso ajudar a preservar alguma coisa. Mas me pergunto se ao fazer o exercício de considerar algum grau de libertinagem em Tylor, cometeria algum tipo de abuso real. Vejamos:

Para a antropologia libertina o homem é, essencial e historicamente, um sujeito de representações. Submetido à todas as intimidações e intimações dos poderes exercidos sobre ele: religiosos, políticos, culturais e morais. O pensamento libertino é uma filosofia prática que, ao definir o humano tem como meta agir sobre ele. Se o homem é um sujeito impedido de usufruir seu desejo o que ele pretende é que se possa libera-lo das representações que o alienam. Antes de 1623 os libertinos exprimem enfaticamente este objetivo; e em torno de duzentos anos mais tarde Sade, por meio de suas narrativas e especulações filosóficas, repreende literalmente o diagnóstico e os objetivos, ainda que as fontes da obstinação da filosofia libertina se façam presentes. A história da libertinagem é a história deste pensamento de libertação tomada a partir da realidade do corpo e dos liames sociais. Confrontados com o recrudescimento político e religioso sob Richelieu no controle do Estado e dos indivíduos, na manipulação dos símbolos e representações, os libertinos tiveram que se constranger a se libertar sob a máscara da submissão. Sabidamente castigados, sua reivindicação parece se perder; e de fato, ela es infiltra se esgueirando pelo subsolo e se apodera de grandes espaços de vida.”(Reichler, 1987:09)

Não tenho nenhuma pretensão, aqui, em provar ou defender a tese de que Tylor é libertino. Na verdade, convém ainda mais que ele seja, como o diria o mesmo Reichler, um pseudo-libertino que traga de volta à vida traços particulares do pensamento e prática libertinas que, por alguma razão, deixaram de vigorar de pleno direito. Ora, se formos levar em conta que o momento auge libertino se erige em confronto com as marcas mais agressivas do absolutismo monárquico que é, para além de qualquer coisa, a teologia política transformada em Estado em vias de modernização, é de se esperar que o cataclismo revolucionário tenha varrido não somente as instituições fundamentais de uma certa cristandade no poder, mas também as peças que se moviam em movimento contrário. Se existem libertinos após a revolução, e Tylor é um deles, os mesmos os são na condição de médiuns; difusores que falam com a poeira dos arquivos. Mesmo que se diga que o triunfo revolucionário coloca a libertinagem, ou a imoralidade, no poder – a alternação depende da acusação -, é algo ingênuo pensar que a mudança na estrutura das relações afeta somente um dos termos. Quanta diferença existe entre as duas atitudes: o libertino que dissimula publicamente o golpe que pretende dar e que para falar sobre o seu desejo, o traduz na linguagem do poder eclesiástico-temporal; o evolucionista que silencia o argumento teológico em público e traduz a vida do espírito na linguagem sensualista reduzindo a linguagem eclesiástico-temporal à ordem das funções orgânicas só pode ser, portanto, libertino em parte ou, de uma outra forma, uma sobrevivência da libertinagem.
Mas as sobrevivências culturais tem um objeto específico, dado que se remetem às superstições que são, igualmente, alvo das investigações de De Brosses, este libertino de pleno direito. Não convém, e não é o objetivo destas notas, dizer que a moral libertina seja necessariamente uma superstição. Contudo, o espectro do conceito de sobrevivência cultural se remete a permanência de fórmulas de ação simbólica que, remetidas aos hábitos que recebem a designação de tipo direct symbol, não tem valor prático algum que não seja a própria repetição da fórmula – acusação que recai sobre os ombros das ciências ocultas do século XIX, por exemplo. Se as superstições são falhas na associação de idéias, como lidar então com as sobrevivências que são, no mais das vezes obstruções ocorridas no seio de civilizações no que concerne a história das idéias?

The principal key to the understanding of Occult Science is to consider I as based on the Association od Ideas, a faculty which lies at the very foundation of human reason, but in no small degree of human unreason also. Man, as yet in a low intellectual condition, having come to associate in thought those things which he found by experience to be connected in fact, proceeded erroneously to invert this action, and to conclude that association in thought must involve similar connexion in reality. He thus attempted to discover, to foretell, and to cause events by means of processes which we can now see to have only an ideal significance.” (1873:104)

A mancha semântica do associacionismo é marcante aqui, na qual a discussão industrialista se encontra com a moral libertina na qual a correta associação entre idéias tem respaldo na mais adequada associação entre pessoas, criando um espelhamento produtivo entre organização social  e sistema de representações a respeito da vida social e da natureza. Proceder de forma equivocada implica em não associar as idéias com os fatos, entendendo que os fatos tem uma certa natureza que não se restringem à escala e dimensão da sensação produzida por um  dado evento. Recusar os procedimentos de investigação empírica é o equivalente a pedir asilo na terra do fetichismo pela insistência na prática de toda sorte de superstições.
Há no argumento de Tylor, assim como em todo o debate a respeito das superstições com relação ao qual os libertinos foram vanguarda no século XVII, uma problematização dedicada das artes divinatórias – o mesmo tipo de arte que fez com que Agostinho de Hipona, em favor do livre arbítrio, veio modular o presente intuitivo em 3 modos em favor da atenção como forma de antecipação. O trecho que pretendo ressaltar nos leva, obviamente a um argumento de tipo “vôo das andorinhas” que convém discutir com maior vagar pois uma antropologia da difusão das formas que presa não somente a produção de objetos (industrialismo) e o teatro das representações (fetichismo) como critérios de objetividade não pode se furtar de certos desdobramentos em que, por exemplo, Tylor encarne uma sobrevivência libertina ou que faça, por sua vez, da atividade antropológica uma forma de difusão cultural. Para além de uma discussão sobre os dados fora de contexto co-extensiva a Frazer, por exemplo (Strathern, 2014) os signos de tempos futuros carregam consigo a exata problematização em que determinação e probabilidade entram em conflito como agências temporalizantes. No caso em especial, das artes divinatórias, o ponto em questão é a idéia de que signos indiciários dizem respeito a um evento futuro e não meramente presente.
Se há fumaça, há fogo. Se na relação indiciária o que entra em questão é a contiguidade entre sinal e objeto, a crítica ao fetichismo como fórmula do mal-entendido, ou de um mau hábito de pensamento, está em extrapolar uma relação de contiguidade a toda uma cadeia causal maior e mais sutil. Este erro faz com que todos os que o cometam estejam, digamos, na infância da razão o que significa que a racionalidade e a irracionalidade são ambas potências de casa ato de juízo e que, com a finalidade do seu melhor desenvolvimento – Primitive Culture advoga em favor de uma antropologia do desenvolvimento – devem ser orientados segundo a ordem do método, a uma espécie de administração tutelar:

The Maori may give a sample of the character of its rules: they hold it unlucky in an owl hoots during a consultation, but a council of war is encouraged by prospect of victory when a hawk flies overhead; a flight of birds to the right of the war-sacrifice is propitious if the villages of the tribe are in the quarter, but if the omen is in the enemy direction, the war will be given up.”(Tylor, 1873:108)

O vôo do falcão é índice de um certo futuro emitidos desde o presente àquele que testemunha, transmitido desde alhures. A crítica que a antropologia contemporânea poderia fazer a esta passagem, e a todas as demais, culminaria em super-inflar o problema do contexto, fazendo com que os requisitos de uma teoria do conhecimento baseado no conceito de representação como duplo das séries empíricas apreendidas pelos órgãos dos sentidos e organizadas conceitualmente sofram de hipertrofia. Dito de outra forma, Tylor estaria agindo como os primitivos que ele classifica como tal ao isolar toda uma relação possivelmente complexa entre os maori e as corujas, considerando-a um erro de atribuição reduzindo causalidade às relações de caráter indiciário. Assim, relações de caça, orientação meteorológica, espacial que seguramente compreendem um complexo de relações entre corujas e maori – e o contrário – não estariam sendo considerados. Grande parte do esforço etnográfico comprometido com a temática do realismo da descrição etnográfica persiste na tarefa, para todos os efeitos ética, em descrever com vistas em dizer e comprovar que o primitivo vitoriano – algo semelhante ao religioso dos libertinos – não existe. Contudo, o primitivo é algo mais difícil de capturar porque ele sempre tende a ser alguma outra coisa.

A membrana, a pupila e o cristalino

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Saudosa ressaca dos olhos de quando ainda havia maré.    

Existe uma arte na qual os olhos são medidos pelo fosso aberto pela pupila desejosa de ver o que, invariavelmente, é visto. Eis o alimento que, quando falta, cobra a dívida da água d’antes no qual o imperialismo dos sentidos assume os ares, as botas e as roupas brancas do coronel. Tempos de seca, fossos selados, alma trincando aos poucos enquanto as vestes traduzidas em grãos e poeira seguem levadas pelo vento, que parece levar consigo não somente o humor, mas a paisagem toda. Eis a estação da vida em que mesmo o esgoto é fonte de umidade; em que o verme é sinal de vida. Enfim, estamos em êxodo, não sobrará ninguém - dizem os olhos abertos com as íris cheias de si, oprimindo o canal que faria da pupila todo um oceano que agora vê, mas não enxerga não vertendo mais do que um fio d'água correndo em ampulheta. E acabou.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Não como secularização, mas como sobrevivência: notas sobre a ruína, a morada e o fantasma do religioso.


--> DE BROSSES, Charles. (1988[1759]). Du culte de dieux fetiches ou Parallèlle de l’ancienne Religion de l’Egypte avec la Religion actuelle de Nigritie. Paris. Fayard

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__________________(1988). O fingidor e o censor no Ancien Régime, no Iluminismo e hoje. Rio de Janeiro. Forense Universitária.

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--> VICO, Giambattista. (1999). A ciência nova. Rio de Janeiro. Record 



8 (segundo intervalo libertino)- A tensão entre Vico e De Brosses sugerida, que reencena algo que se dá no seio da obra de Francis Bacon, tem um segundo momento, igualmente proveitoso para a introdução do problema para o qual me dedico. Diz respeito ao deslizamento semântico entre o feito e o fato. Seguindo a orientação que o presidente De Brosses sugere, fetiche é um termo forjado por nossos comerciantes do Senegal a partir da palavra portuguesa fetisso, isto é, coisa mágica, encantada, divina ou oriundo dos oráculos; da raíz fatum, fanum, fari (op.cit.:15), exaltando que se trata, antes de tudo de algo feito, fabricado, postiço e que tem na ação humana a imputação de sentido. Isto significa que os poderes atribuídos ao fetiche (o fetiche é causa de algo) é fruto antes da imaginação do que da correta observação da natureza – como a natureza das pedras, como veremos. O fetiche é então o primeiro objeto que uma dada nação se presta a consagrar cerimonialmente. O primeiro exatamente por se reduzir a uma elaboração mais confortável, produzido de maneira infantil. Uma vez consagrado, o objeto participa de um circuito de prestações cuja idolatria não faria justiça sequer a dimensão do homem deificado.
Tal como De Brosses sugere, a relação entre a revelação e o sobrenatural nada mais é do que preguiçosa. Satisfaz-se com a primeira analogia que a mente examina, e a ciência não pode tolerar hábitos indolentes, pondo em evidência a ética protestante que vai além da iconoclastia ao valorizar o exame detalhado como uma forma de conduta constante no exercício da observação. Em Vico o “fato” enquanto decorrente da ação humana como coisa feita, ou fetiche - termo que não dá as caras em Ciência Nova[1] - em nada contradiz o que se impõe como conhecimento racionalmente válido. Pois as formas geométricas, que são igualmente produtos do espírito humano, são a via pelas quais as relações entre as coisas são feitas com o máximo de rigor, o mesmo tipo de rigor que Galileu teria encontrado no livro da natureza que se escreve por símbolos geométricos (Daston:1995; Galileu:1999, Popper, 1985). Eis o espírito que estuda a geometria com a finalidade de conhecer o mundo na condição que é própria à humanidade. Como o processo se dá por via da linguagem não pode, e nem deve impedir que a linguagem mesma aconteça segundo seus próprios desígnios, especialmente os de caráter onomástico, fruto que são da Providência. Não à toa o projeto de Vico recebe a alcunha de economia poética. Que o fato reportado seja feito, imaginado, criado pela ação humana, nisso não há contradição uma vez que é a condição para qualquer coisa que se ponha como horizonte do conhecimento humano.
É contra este tipo de itinerário intelectual que De Brosses se debruça. Entre o enigma e o usual, De Brosses é adepto do tipo de terapia da linguagem que encontramos em argumentos savants como nos Elementos de Filosofia de D’Alembert. Se um termo, uma palavra faz menção tanto ao trivial quanto ao Divino, é no trivial que reside sua verdade, dado que nada há no mundo senão o mundo. Todo e qualquer excedente do trivial é abuso de sentido e contradiz a produção de todas as ideias, que partem do elementar para o complexo e elevado. É neste tipo de exercício em que cada passo se dá num território sem atrito, dado que meramente fantasioso, que as populações bárbaras e seus comentaristas usuais se perdem, perdendo com isso sua especificidade produzindo a indiferença própria às relações selvagens. O mundo maravilhoso é, por fim, meramente trivial quando olhado com método que é, também, sua forma de colonização que, de outra forma não é senão a franja dos processos de normalização dos espaços de relação pela ampliação dos espaços de mera natureza que são, por isso, sujeitos à administração humana. Este movimento, contudo, é fruto de um esforço que, quando datado o momento de redação de Du culte de dieux fétiches usufruía de farta bibliografia e vulgarização, produzindo ecos em instâncias fundamentais da constituição de espaços modernos de instituição, o que produz um eco interessante entre a elaboração das instituições modernas com a normalização da atividade científica de uma forma geral. Com isso quero dizer que o longo debate sobre ciências normais protagonizado pela historiografia de Lorraine Daston e seus parceiros (Daston & Park, 2001; Daston & Galison, 2007) chama a atenção para o complexo disciplinar que constitui a atividade científica moderna segundo seu exercício pragmático que institui um território que impõe aos participantes outra sorte de regras e, ao mesmo tempo reconhece outra forma de objetividade que não a que inaugurara o exercício especulativo mesmo que seja, como no exemplo de De Brosses, com a finalidade de justificar a colonização das paisagens selvagens – o que oferece um retrospecto empírico frutífero para a tensão imanente ao binômio espaços estriados/ espaços lisos de Deleuze & Guattari (1996). O cientista que começa a observar deve, no final de seu exercício, ter rompido com o senso-comum de sua formação. Com isso, ele muda de hábitos produzindo um discurso de especialista, podendo assim participar de uma comunidade e, portanto, de uma forma de comunicação[2].
           
Em meados do século XIX, objetividade como coisa era tão nova quanto a objetividade como palavra. Ao começar em meados do século XIX os homens de ciência começaram a ficar abertamente incomodados com o novo obstáculo para o conhecimento: eles mesmos. Seu medo era que seu self subjetivo estivesse prestes a petrificar, idealizar e, no pior dos casos, regularizar observações somente para encaixá-las nas expectativas: ver o que se desejaria ver.”(Daston & Galison, 2007:34)

Esta obsessão do século XIX possui nome, um conceito para um problema anterior, a saber, os dilemas da observação. Num trabalho que se dedica às publicações de atlas científicos, como é o caso de Daston & Galison (2007), o dilema do recolhimento do espécime que fizesse as vezes de exemplar ou mesmo arquetípico diante das enormes variações de uma dada espécie; e também a fixação do que seria uma determinada espécie animal; todos são exemplos determinantes para atividade da observação e investigação da ordem natural das espécies. O hiato entre os séculos XVII e XIX apontam para uma mudança importante no que diz respeito aos métodos que afetam, como não poderia deixar de ser, também a fortuna iconográfica. A subjetividade que caracteriza o artista romântico, sua capacidade e distinção no trato com as letras, a beleza com que impingia a figura do espécime desenhado, tudo isso já fez parte da arte de observação que, em seu primeiro momento acadêmico fez parte das atividades das Belas Artes, incorporadas ao grau universitário somente durante o período renascentista.
Ora, se atentarmos para o que De Brosses chama a atenção veremos que se trata exatamente de sua participação neste mesmo movimento de negação das afecções mais propriamente subjetivas, ou do espírito, para fins de manutenção da condução do raciocínio por via do método.  Trata-se de advogar em favor de severíssimas mudanças de hábito de forma a atingir, pouco a pouco, em algum grau, a impessoalidade. Este movimento se torna particularmente visível quando contrastamos um determinado estado de arte do século XVIII com o que se move em fins do século XIX:

Por exemplo, em 1866, a Accadémie des Sciences enalteceu as fotografias panorâmicas dos Alpes produzidas pelo geólogo Aimé Civiale por sua “representação fiel dos acidentes” da superfície da terra que, em arte seriam deploráveis mas os quais “bem ao contrário, deveriam ser [o objetivo] para aonde tende a reprodução científica de objetos.” O self científico do século dezenove fora percebido por seus contemporâneos como diametralmente oposto ao do self artístico, assim como as imagens científicas eram constantemente contrastadas com as de caráter científico.”(Daston & Galison, op.cit.:37).

Se de um lado o contraste relativo à produção de imagens se dá entre as artes e as ciências que em outro momento já estiveram na mesma situação nos graus universitários, o que dizer da relação análoga entre as ciências diante do pensamento dogmático? Se no século XIX é a subjetividade que parece sofrer com os golpes do método, ou ao menos é quem ameaça a atividade científica, contra o quê o ceticismo mitigado e distribuído como atitude inferencial que se contrapõe à teologia e à fé dogmática se contrapunha? A historiografia na qual me baseio não vacila em declarar: é o sobrenatural que deve ser anulado como ambiente fenomenológico. É este o percurso sugerido no balanço entre o sobrenatural, o preterntural e o natural como regiões que se prestam a acolher não somente eventos que lhe sejam pertinentes mas também, populações.
Como é de se esperar de uma paisagem conceitual que ordena coisas, pessoas e animais, e é o caso das ciências que dependem de taxinomias, os grupos de fenômenos são compostos por casos-limite e fronteiras. No caso deste balanço tripartite, há um grupo fronteiriço e é a partir dele que convém retomar a primeira seção do trabalho de De Brosses, aquela que propõe uma imagem de selvageria como residente da longínqua Nigrícia. Se há o natural que de forma grosseira aponta para o regular e para o ordinário – há quem diga mundano; há quem diga o exato oposto, e aí está uma questão; se o natural é regular e ordinário, o sobrenatural aponta para algo que acontece como exceção que pode culminar no sublime. Assim, o preternatural serve de entremeio, ainda extraordinário, cuja significação é imprecisa: três sóis no céu, gêmeos siameses, um pequeno peixe que consegue parar um navio, a eterna antipatia entre os lobos e as ovelhas (ou entre cães e gatos). A praeter naturam  não exclui a possibilidade de ser, no limite, um evento inscrito nas possibilidades da natureza em um aspecto que ainda é oculto. Por seu caráter excepcional, atendem também pela alcunha de “maravilhas”(wonder).
Vale notar que neste entreposto entre ciência e religião opera um regime de equivalências importante. Como vimos o natural, como o absolutamente regular, o que em parte diz respeito à configuração de um debate abrangente sobre o espaço homogêneo, posto em voga especialmente por Giordano Bruno e Galileu Galilei, cada um a sua forma. Com isto, é possível recuperar uma seguinte distinção: o natural é regular da mesma forma em que o sagrado pode ser compreendido, nos termos de Mircea Eliade, como a fundação do mundo que cria um centro na extensão homogênea e infinita do espaço (1992:22). Oponho assim o natural ao sagrado pela oposição análoga entre o homogêneo e o heterogêneo que, em termos rigorosamente iluministas se remete ao mesmo espaço, que é aonde se dá o movimento e onde se discriminam os corpos; assim não saímos do terreno de De Brosses que tem uma tendência expansionista indisfarçável.
Ora, se o natural é o terreno da regularidade, não é difícil entender que as ciências e as artes defendidas por De Brosses operam fundamentalmente como uma operação profana que tem como objetivo encontrar regularidades nas formas mais adversas de exceção. Cabe ao philosophe encontrar nas crenças mais absurdas a chave que lhe ilumina, a forma pela qual, no erro encontra a razão. É preciso levar até o bárbaro a luz daquilo que ele mesmo porta sem saber. O custo disso é a eliminação do sobrenatural por via de uma cuidadosa colonização do preternatural.
O detalhe do primeiro passo dado por De Brosses, e compõe o complexo comparativo que sugerem estados experimentais comuns espécie humana, é que seu argumento não trata de nenhum tipo de difusão – ainda que possa haver. O culto de deuses fetiches toma em muitas situações, nomes por empréstimo, como veremos. Mas ainda que a contiguidade geográfica imponha ao argumento uma série de restrições para a especulação, há uma hipótese de fundo que afirma uma condição geral, a de que toda religião começa com o fetichismo – assim como a linguagem acontece a partir de uma associação elementar. A primeira seção do discurso de 1759 não é outra coisa senão uma longa lista de fetichistas que conta com a presença de, dentre outros, iroqueses, haitianos, brasileiros, sírios, apalaches, espanhóis, cubanos, gregos, lapões, ilinois etc. Neste complexo comparativo, De Brosses oferece um pano de fundo com reatalhos da Religião dos Selvagens que é, como é possível deduzir, uma religião a despeito dos religiosos; uma denominação a despeito dos denominados. E, tal como analisada, a maior proximidade com a natureza selvagem não lhes propicia qualquer vantagem na história do pensamento que, por consequência significaria desvantagens na história das instituições humanas:

La Religion des Sauvages, dit un Missionaire, ne consiste que dans quelques superstitions dont se berce leur credulité. Comme leur connoissance se borne à celle des bêtes et aux besoins naturels de la vie, leur culte ‘a pas non plus d’autres objets. Leurs Charlatans leur donnent à entendre qu’il y a une espèce de Génie ou de Manitou qui gouverne toutes choses, qui est le maître de la vie et de la mort, mais ce Génie ou ce Manitou n’est qu’un oiseau, un animal ou sa peau, ou quelque objet semblable, qu’on expose à la veneration dans des cabanes, et auquel on sacrifique d’autres animaux.”(1988:33).

A maior proximidade não sugere outra coisa senão maior rapidez na produção de analogias e, por isso um campo empírico mais frágil na correlação entre eventos naturais. A Religião dos Selvagens não faz da alma das bestas algo de natureza diferente daquela dos homens, chegando mesmo a dotá-las de superioridade. Confundindo o agente com a ação, ou causa com o efeito, tem em geral um mesmo termo para fazer menção a um e outro. Não reconhecem nos fetiches a força anímica que atribui valor às coisas e animais; não reconhecem meros efeitos oriundos de plantas, atribuindo-lhes poder volitivo de ação. A mitologia egípcia que ensina terem sido os deuses aqueles que ensinaram os homens a se portarem segundo sua condição civil seria equivalente à religião grega que narra peripécias de um semi-deus que combate monstros para se equivaler àqueles postos no Olimpo.
A investigação de De Brosses acaba por produzir dois efeitos diferentes. A primeira conduz o argumento para uma escala em que há equivalência entre os termos de comparação produzindo um espaço homogêneo dos sentidos. Egípcios e nigrícios são, via de regra, atados a um modo equivocado de raciocínio que demanda denúncia e, por fim, produz uma segunda equivalência, que é o segundo efeito da comparação. Os sábios modernos que lêem muth como algo além de “história que narra a vida dos mortos ilustres” estaria cometendo o mesmo erro que os demais selvagens – estes de fato, aqueles de direito. Assim sendo, a civilização não é o bastante. É preciso saber controlar o entusiasmo. É preciso desfazer as analogias mais espontâneas em favor de uma investigação meticulosa. E é preciso começar do mais elementar cuja fonte sempre se reconstitui o domínio do experimental próprio à teoria do conhecimento. Assim, com o objetivo de refutar os historiadores que partem da revelação como fonte do saber, é preciso denunciar a atividade mais elementar de criação de ídolos, a mais baixa que não sobrevive sequer aos ataques de fetichistas mais sofisticados. Resta saber como é que se cria, como é que se dá vida a um deus fetiche?
A segunda seção permite que se compreenda que sorte de prejuízos provém o culto dos deuses fetiches, aprofundando a generalidade dos mesmos recorrendo em maior detalhe à mitologia indo-européia, e menos aos relatos de viagem que informaram sua História das Navegações em terras Austrais, ou mesmo a seção anterior. Vale notar que o comentário relativos à Nigrícia tem como fonte, antes de tudo, um painel reduzidíssimo. Afora as fontes clássicas que se delimitam antes de mais nada em regiões mediterrâneas do continente africano, como é exatamente o caso do Egito, De Brosses não contava com muito mais do que a Histoire naturelle du Sénegal, publicado em 1757 por Michel Adanson[3]  e mais alguns relatos reunidos para fins de publicação sobre o mesmo Senegal no verbete da Enciclopédie, escrito por Conrnélius Pauw, que administra a literatura de viagens produzidas sobre a Guiné, a Abissínia, e Congo.
No combate contra a sabedoria dos antigos é exatamente a partir dos exemplos frequentemente emulados – o Egito, a Grécia e a Roma antigos – que De Brosses se detém com maior detalhe. É preciso encontrar formas equivalentes de erro para que o culto dos deuses fetiches possa ser generalizado até o ponto em que sejam isoladas as formas modernas de fetichismo. Mas é preciso também ter por onde discorrer sobre o tema.  
A estratégia utilizada no caso do antigo Egito resume-se na história antiga produzida na antigüidade, se é que podemos chamar assim os escritos de Diodoro Sículo. Assim como já o fizera antes, De Brosses privilegia o testemunho que, não obstante ser de primeira mão, conta com alguma dose de ceticismo, fazendo algo mais do que relatar o que ouve dos povos estrangeiros. A credibilidade está em comparar o que se ouve com o que se vê, o que exige algo mais do testemunho que não pode vir de qualquer um. Deve ser oriundo de alguém que respeita as regras do decoro científico, ainda que não participe do mesmo diretamente[4]. Para tal é preciso desconfiar das classificações impostas pela autoridade dos antigos para fins de um novo processo de observação e nova classificação à luz de uma comparação mais extensa feita a partir de eventos coletados ao redor do globo. O viajante deve ser, para todos os efeitos, uma forma de naturalista das instituições humanas. Mas se há um critério imprescindível é o fato de Diodoro ter passado uma temporada entre os egípcios de forma a poder contar o que viu com os próprios olhos e ouviu com as próprias orelhas, cumprindo alguns dos critérios relativos à observação qualificada.
A longa passagem que De Brosses utiliza dos textos de Diodoro disserta sobre a versão que a mitologia egípcia oferece da origem das instituições humanas, relacionando cada deus a um aspecto da vida civil, elencando a agricultura, as leis, o comportamento cordato e mesmo as festividades como elementos oferecidos como dádiva. A lista de instituições que, segundo Diodoro, os egípcios afirmam ter aprendido com os deuses segue como tal: o pão de lótus, o cultivo de plantas outrora desconhecida, o estabelecimento das leis, o banimento da violência, foram ensinados por Isis; a abolição do canibalismo e a cultura de frutos, o cultivo do vinho e os festejos ao redor da bebida vieram de Osíris; as regras da linguagem, a instituição dos nomes, os ritos de culto do sagrado, os princípios da astronomia, música, dança e exercícios regulares, o cultivo das oliveiras são resultado dos ensinamentos de Mercúrio[5] (sic). De uma forma geral, a edição que De Brosses faz ao citar a passagem de Diodoro sugere que a função dos deuses no Egito fora a de fazerem dos homens, homens, isto é, retirá-los da selvageria. Ora, selvageria é atribuir aos deuses aquilo que é fruto da ação humana, e nisso reside a acusação de De Brosses. Basta ver o papel que a observação meticulosa poderia desempenhar:

Observons ici en passant, que si Toth eût regardé le serpent non comme animal, mais comme un simple emblème de l’éternité, ainsi qu’on en a depuis usé plusiers fois en le dépeignant en cercle se mordant la queue, il étoit inutile qu’il employât beaucoup de tems à observer la nature de ce reptile. »

Toth, tal como descreve Sanchoniaton em de Phoenicum elementis, repetiria o esforço de traduzir fatos por via de alegorias. Este modo de agir diante da realidade implica em antes de mais nada em um conhecimento inútil. Inútil? Para fins científicos, certamente, mas se mirarmos a finalidade política, o diagnóstico de De Brosses não poderia ser mais agudo, em muito semelhante aos exercícios de crítica dos costumes por via das formas bárbaras e orientais que tem nas Lèttres perses de Montesquieu, no Zadig de Voltaire e em Les bijous indiscrètes de Diderot suas formas mais populares[6].
Uma vez que a raiz da palavra mythe remonta às narrativas dos mortos ilustres, a relação entre os deuses fetiches e a autoridade política está desde a raiz manifesta. O papel dos adivinhos e sacerdotes sugere qual tipo de autoridade está fundada no fetichismo que é, antes de mais nada o exercício abstruso e absurdo da razão marcando o que a antropologia social moderna determina como a função social do sacerdócio em detrimento das categorias êmicas de classificação. O alvo no absolutismo não poderia ser mais evidente. Logo no parágrafo anterior à passagem que discute o exercício de adivinhação do futuro por via das técnicas africanas, De Brosses discute o problema dos homens deificados e a idolatria implicada; eram o Egito e a Nigrícia as duas formas de exceção. O fetichismo de base, o mais elementar não opera desde sempre na idolatria do homem deificado, o que implica em dizer que esta não é uma forma frequente de adoração, e muito menos originária:

Mais venons à des faits bien antérieurs à tout ceci, et qui remontent à la plus haute antiquité dont il y ait mémoire parmi les peuples Payens. Nous y verrons quelle idée ils avoient eux-mêmes sur la première origine du cule des astres, des éléments, des animaux, des plantes, et des pierres. On aura lieu remarquer, no sans quelque surprise, que plus le temoignage est ancien, plus le fait est présenté d’une manière simples, naturelle, vraisemblable; et que la première raison qu’on ait donnée de l’introduction de ce culte, est encore la meilleure et la plus plausible qui ait jamais été allégué : de sorte qu’elle pourroit suffire, si sa simplicité, qui ne permet pas d’en faire l’application à tant d’objets variés d’adoration des peuples sauvages, n’obligeoit d’avoir encore recours à quelque autre cause plus générale ». (1988 :60-61)

Retomando o argumento e a autoridade de Sanchoniaton – interpretado por Philo e Biblos, assim como traduzido por Eusébio, o que já dispõe de uma certa linhagem –, vemos a forma como se dá o perigo entre conhecimento e política criando um espaço que indiferencia agente e ação, causa e efeito. É a partir de Sanchoniaton, comentado por Philo, que os atos litúrgicos são confundidos com eventos naturais, e vice-versa. Os ventos impetuosos de Tiro atingem o bosque ao ponto das árvores se agitarem produzido fricção e, por conseguinte, fogo. Os ventos e o fogo são postos em falsa analogia gerando o tipo de mito que narra eventos de combustão espontânea ou, no caso, pelos deuses do vento. O mesmo se dá com as pedras untadas, boetyles. O que marca uma situação como esta é a narrativa fundadora e a autoria primeira das histórias que, se num primeiro momento servem para fundar a vida em comum, logo mais servem para estabelecer o poder soberano que, em bases como as de sua fundação, operam por via do erro, da superstição para sustentar um poder que, à luz da história natural da humanidade só poderia ser ilegítimo.
O descompasso que destitui a humanidade de sua mais óbvia dignidade, que é a atividade intelectual diante do mundo natural, grosseiro e selvagem, perfila uma enormidade de outros exemplos retirados de Estrabão, Plutarco, Tácito, Pausânias e outros notáveis. Os exemplos recolhidos a seguir agravam a acusação dado que não são os deuses que não estão lá uma vez que são postos como fetiches, mas o animais como o chimpanzé, o babuíno, o crocodilo, a tartaruga, o íbis e o gato que são divinizados, assim como plantas e legumes, para não dizer das pedras. As pedras são, no final das contas a prova maior do absurdo porque nelas reside, antes de mais nada o silêncio e a imobilidade. Não se encontra nela nenhum sinal de movimento e ela nada diz, nada grita e, no entanto no culto de deuses fetiches sequer uma forma antropoide é necessária para que ela venha a desempenhar um papel divino. Atingimos aqui a forma mais baixa de idolatria que serve de protótipo do argumento de De Brosses, sobre a qual não pesa nenhuma forma de concretude que não a autoridade da voz que impinge a pedra de alma. A pedra talhada não precisa sequer ser antropomórfica. Um talhe que a deixe quadrada pode ser suficiente para produzir a idolatria que é, para todos os efeitos condenada em mais de um livros do Velho Testamento – desde a Gênese aos livros dos profetas.
Neste caso é impensável abolir a trajetória da condenação de um pano de fundo moral de respeito, observância e penitência sob os ditames da criação. E é assim que, ao sugerir a figura do self científico, Daston & Galison (2007) fazem menção ao conteúdo moral da ética da observação que começa a tomar forma em trabalhos como de De Brosses sem conseguirem atentar, contudo, à moral libertina que lhe é particular, em especial no que tange o âmbito das reformas jurídicas dos séculos XVII e XVIII. Ainda assim, a disciplina da repetição à exaustão dos procedimentos, a sujeição ao tédio e ao silêncio e a anulação do belo como manifestação autoral fazem parte do tipo de mortificação ascética que caracterizam algumas formas modernas de ascese intramundana, como insiste Max Weber (2004; parte II, capítulo 1). Na formação de diretrizes de um modo de objetividade mecânica, cuja característica é o ideal de um mínimo de intervenção para atingir o máximo de objetividade e que tem seu auge exatamente no século XIX europeu, o meramente visível e o imediatamente constatado não se prestam à diligência que as investigações devem se sujeitar. A partir de um naturalista contemporâneo, Carolus Linnaeus (Carl Linneu), Daston & Galison definem com parcimônia esta fidelidade à natureza que conduz tanto a investigação quanto a crítica de De Brosses. Afinal de contas, para além das variações geográficas, ou de tipos no caso da botânica, é preciso se dessensibilizar diante da variedade hipnótica da natureza, recorrendo para tanto a uma seleção agressiva de fontes e espécimes. Se Linneus debate com seus ilustradores ao dizer que há uma dimensão de negação de si na confecção das ilustrações dos atlas de história natural que produzia, é por conferir uma certa constância estatística nas formas que não estão, integralmente em nenhuma delas especificamente fazendo o sistema classificatório operar por zonas ou regiões de indiferença que são, todavia, específicas. A operação que elabora a Nigrícia e os modos selvagens de religião não parecem advir de outro esforço senão deste.  Les peuples on pu se recontrer également sur ces absurdités, ou se les communiquer les uns aux autres (De Brosses, 1988:95).


[1] O que poderia ser explicado pelo fato de que, ao contrário de De Brosses, as fontes de Vico são majoritariamente oriundas das letras clássicas, com ênfase em Plotino, Pico della Mirandola, Herôdoto, Tucídides e Tácito, e não livros de viajantes cujas citações se dão mais por via de escritores que redigiam a respeito do que pelos relatos em primeira pessoa que, para fins gerais, e diante certas premissas epistemológicas, não são assim tão importantes. Vico era professor de oratória e retórica, e é exatamente a economia que movimentam as palavras o seu foco.
[2] Vale notar que esta é uma premissa que Lorraine Daston não carrega sozinha. Não obstante ter escrito seus livros em conjunto como com a historiadora Katharine Park e com o físico Peter Galison, esta premissa relativa à comunicação entre pares como fundamento da atividade científica está presente em outros trabalhos que absorvem de alguma forma as discussões foucaultianas sobre disciplina dos corpos. Um exemplo disso é História da Química, de Bernardette Bensaude-Vincent e Isabelle Stengers, livro que levante a tese interessante sobre o corte epistemológico entre a alquimia e a química. Segundo as autoras é a necessidade de compartilhar dados e produzir um sistema de notações comparativo eficiente, inclusive para fins industriais, que a concepção do objeto de pesquisa e da forma de produzir conhecimento sofreu sua mutação decisiva. Por não ser exclusivamente o império do sábio, mas por participar de um comércio de fórmulas que deveriam poder ser repetidas ad infinitum que a química encontra o moto-propulsor para reconfigurar todo o sistema e conhecimento alquímico. A hipótese, não posso deixar de confessar, me soa tentadora. Para uma história social deste esmo processo, vide Peter Burke (2003).
      Convém lembrar, e aqui tanto Michel de Certeau como historiador e Louis-Alphonse Cahagnet como testemunha servem como fontes indispensáveis para estabelecermos o contraponto que a modernização dos sentidos (Gumbrecht, 1998) impões, as saber, de como o empirismo como critério de investigação toma a forma de um empreendimento público, e não oculto. Esta reserva com relação aos procedimentos do ocultismo e da magia próprios da moral libertina tem incidência maior exatamente nos termos de explicação do que na gama de eventos considerados relevantes. E aqui, a história da química é tão interessante quanto ilustrativa – cabendo, antes de mais nada, uma ressalva. Ao dizer que a história da química oferece contribuições o que estou dizendo é que o conjunto narrativo que oferece à química tal como a entendemos – reificada em alto grau, sobretudo em sua especialização – um percurso, mais do que inteligível, justificável. Ou racional. Dito de outra forma, a história da química seria a narrativa do seu triunfo, em especial sobre a alquimia. Fôssemos tratar a história do triunfo com certa desconfiança, como nos sugere Koselleck (2013) dizendo que a química não é exatamente, nem o que diz ser e tampouco o que dizem dela, estaríamos sendo algo indiferentes à instituição que de alguma forma ela veio a ser. Em favor de sua história estaríamos cometendo, não necessariamente uma injustiça mas uma falta de justeza com o devir da química que todavia, não dependerá destas notas para acrescentar novas dimensões ao seu triunfo.
      A hipótese central do livro de Isabelle Stengers e de Bernardette Bensaude-Vincent (1986) é algo sofisticado, ainda que trabalhe na boa companhia da recente historiografia da leitura e dos métodos de impressão e difusão de impressos, como os de Eizabeth Eisentein, Ian Watt, Michel de Certeau, Robert Darnton e Roger Chatier, sem necessariamente dialogar explicitamente com elas. A riqueza do trabalho em questão, no qual a comunicação via correspondência científica é abordada segundo minúcias pragmáticas sutis, isola um elemento sensível da química moderna: a elaboração de um sistema que permita transformar uma experiência extraordinária – laboratorial, e não de campo – em algo reproduzível por outrem em um outro laboratório. A conexão entre o sistema de notação e descrição das experiências e o registro gastronômico de procedimentos culinários é suficientemente marcante para impregnar, por exemplo, a estrutura da argumentação dos dois volumes dedicados à arte da magia em The Golden Bough de James Frazer. E é este sistema aquele que melhor atenta contra os arcanos do poder sacerdotal, em particular aquela que trava contato com a criptografia das ciências ocultas. Afinal, não é difícil imaginar que a química não começa do zero e que muitos de seus proponentes fundamentais carregassem consigo um vasto repertório de experiências bem sucedidas no que tange a alcançar a reação pretendida entre os elementos. O embaraço constava, contudo, em registrar as experiências segundo métodos que garantissem a reprodutibilidade da reação alhures – no que implica inclusive num acordo quanto a nomenclatura das partes e na definição de quais são as partes pertinentes e as medidas correlatas de forma a atingir as reações sob controle.  Isto porque é preciso isolar as partes eficientes, tanto do ponto de vista classificatório quanto, obviamente, instrumental. Este tipo de registro é o que se pode considerar como um esforço decisivo contra as ciências ocultas: o ocultismo não gera patentes enquanto a química é uma ciência industrial e depende das patentes para fazer funcionar sua própria economia.
[3] Vide Duchet (1971:47). É aonde encontra-se uma discussão mais cuidadosa das fontes, sua publicação e o papel da composição que estas fontes desempenha.
[4] Sobre esta disparidade não consegui encontrar nenhum estudo e certamente não posso me dedicar ao tema nesta pesquisa. Mas é interessante notar como é que bibliografias tão afastadas do decoro científico em franca formação (Schapin, 1994) podem ser utilizadas como fontes seguras mesmo sendo fontes antigas, como é o caso de Diodoro. Certamente que isto demandaria um trabalho à parte, mas também merece atenção que isto justifica em parte o valor do ceticismo, mesmo a partir de escritos antigos como o de Sextus Empiricus, na formação de um conteúdo bibliográfico que oferece ferramentas para aqueles que recuam antes de dar o passo rumo à fé. Restaria saber, e isto não sei afirmar, qual o papel de Diodoro neste sistema de equivalências que produz afinidade.
[5] Aqui a menção a Mercúrio merece atenção. Sendo a passagem uma citação direta de Diodoro (De Brosses, 1988:40-42), há dois níveis problemáticos relativos à sua aparição na lista de deuses. A primeira questão diz respeito à autoctonia e a divindade compartilhada entre romanos e egípcios durante o período de domínio de Roma sobre a região, assim como a extensa relação de contato e reformulação litúrgica e mitológica que o processo deve ter evocado. Mas ver Mercúrio como um deus egípcio merece considerações mais precisas. Ao mesmo tempo, é sintomático vê-lo nesta posição exatamente porque parte do argumento de De Brosses, como já vimos, diz respeito aos deuses fetiches tomados de empréstimo, o que sugere questões delicadas relativas à autoctonia das formas de culto e, ao mesmo tempo, à estabilidade da relação entre identidade e instituição social. Para uma discussão mais detida sobre o assunto, ainda que breve, remeto o leitor ao artigo de Jean Pouillon (1975) e Pires (2011).
[6] Em Estrutura do harém (Grosrichard, 1979) é possível encontrar um  painel generoso da bibliografia iluminista e libertina que se utiliza da vulgata relativa à crítica do absolutismo por via de figuras retiradas da bibliografia orientalista. O interessante é perceber como a utilização de alegorias, proibida no território do discurso científico se reveste de forma legítima no território da crítica que é, para todos os efeitos, produzida de forma indireta, ou melhor, nas formas restritivas de controle do imaginário a respeito do qual Luiz Costa Lima dedicou parte de sua obra (1989, 1988, 1986). A seguinte passagem sobre racionalismo e religião mostra, contudo, o quanto a crítica do inútil vai de encontro ao que procuro descrever aqui: “(...)as especulações imaginárias representam o obstáculo que os philosophes, em defesa do cálculo pragmático, terão de denunciar, agredir e identificar com as malditas superstições. A defesa do progresso e do avanço da humanidade exige que o critério do útil sobrepasse o ridículo gasto do pensamento em elucubrações ociosas.”(Costa Lima, 1988:94).