terça-feira, 29 de outubro de 2013

Da experiência interior como política da escrita: parte dois


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BATAILLE, Georges. L’expérience intérieur. Gallimard. Paris. 2012 [1954].
______________________. Théorie de la religion. Gallimard. Paris. 2011. 
RANCIÈRE,  Jacques. Políticas da escrita. Editora 34. Rio de Janeiro. (1995)
_______________________. A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. Companhia das Letras. São Paulo. 1988.


II-

            O percurso da emancipação operária não segue uma linha reta mesmo quando a trajetória se utiliza de casos individuais exemplares. Não que seja exatamente uma exceção, ainda que possa ser entendido como algo peculiar. O que é possível narrar são coisas feitas aos pedaços, como leitura interrompida porque extinguiu o feixe de luz, elétrica ou combustível; porque alguém lê no fim do dia o sono corta os olhos desse dentro desligando a vontade do seu suporte orgânico culminando no sono; ou simplesmente porque as coisas se dão integralmente em partes. Não estou falando de um impedimento real como algum tipo de censura premeditada mas de outra forma de circulação de edição de textos escritos, apresentados de forma decididamente heterodoxa com relação aos padrões savants. Rancière conta muitos casos, dado que é o arquivo operário que ele apresenta, e os casos são editados em cortes tão abruptos quanto o exercício de leitura apresentado no capítulo A Nova Babilônia.
            Estamos às voltas com as fantasias infantis de fuga e é a formação literária de Charles Pénnekère que chama a atenção. São seus devaneios que abrem a série de histórias dedicadas mais à deambulação operária do que às brincadeiras diversas traçando nos vôos mais irresponsáveis o desejo de aprender – até então compreendido como o negativo da ignorância. Isto porque foi por não saber responder à mãe quanto a paginação de uma determinada lenda, a de La Chapelle de saint Léonard que sua obsessão por constituir para si uma biblioteca se fez. Mas que se entenda que o universo do então pequeno morador da região compreendida entre Glacière e Saint-Marcel, em Paris. Nada de volumes inteiros que compreendam um argumento ou uma narrativa do começo ao fim. Nem mesmo uma história. A biblioteca fora, dados os recursos existentes, uma complexa coleção elaborada folha-a-folha – “aquelas tiradas das embalagens de alimentos consumidos no dia-a-dia” (Rancière, 1988:59). Abrimos aspas, tanto Rancière quanto eu, a Charles Pénnekère:

            Ficou combinado que minha mãe me guardaria os sacos que serviam para embrulhar os cereais que ela comprava. Ah! com que entusiasmo, voltando para casa, à noite, eu explorava esses tesouros dados como restos de discursos, como fragmentos de anais! E com que irritação chegava ao final da página rasgada sem prosseguir a narrativa, que nunca continuava na entrega seguinte que minha mãe me fazia e forma de sacos ou canudos, embora lhe tivesse recomendado para trazer as lentilhas sempre do mesmo comerciante.”(1988:op.cit.)

            E Rancière encerra aí a citação. Logo em seguida uma outra personagem nos é apresentada, Jeanne Deroin, costureira de roupas íntimas engalfinhada com os esforços mais elencados do que descritos na luta para se cercar dos “tesouros da ciência”. Tão rapidamente, o corte como a passagem acelerada de um dia para outro a segunda citação traz outra história parcial e Rancière se converte numa mão metodológica, a mesma de Charles Pénnekère que lhe trouxe lentilhas. O saco com qual carregava os grãos narrava toda uma outra história da qual nos desviamos pela obrigação imposta fisicamente pelo texto e sua ausência repentina.
            A narrativa implícita é dificultosa, dado que responde à inquisição sartreana sobre o que fazemos o que fizeram conosco. Se a temática das ruínas atravessa o tempo do materialismo compondo uma constelação[1] dispersa, esta mesma constelação narra a história moderna a partir do que resta dos outros, a forma presente do passado narrado à forma de uma história do futuro, um futuro que é hoje. As ruínas, sejam simbólicas ou restos empoeirados duramente cortejados por turistas contam a história da depredação do tempo e dos homens ao mesmo tempo em que revela pontos de acesso à fundação de toda arquitetônica, os cálculos e predileções que numa engenharia precisa, deixam a alma de pé. Mas se para a sabedoria que lê de capa à contracapa as ruínas são fruto dos eventos do século, para os leitores da Paris noturna do século XIX o que circula são as ruínas de um tempo de curtíssima duração que toma forma em páginas rotas cedidas gratuitamente para uma função secundária, a contenção de punhados de lentilha, um saco de papel que se transforma numa história interminável porque demasiado breve.
            A inversão da figuração do tempo histórico de tal ou qual duração é o fruto de um plano par arruinar a geração de equívocos sobre o povo guerreiro para o qual muito se fez esforço em converter o proletariado; o povo. Bravo e colossal e então determinado, para o seu próprio bem, à resistir à tudo e seguir sem medo em uma variação delicada das sagas sacrificiais. Os arquivos operários dos quais Rancière se nutre, o que se mostra nesta coleção de páginas rotas é que a busca determinada pelo devaneio operário-poeta de ilustração onívora que não se importa se o texto fora estabelecido por Ernest Renan ou se foi simplesmente jogado fora aos pedaços como papel de embrulho o põe na posição de alguém que pode querer assumir outro papel que não o da resistência. Até porque, neste caso a dor é na carne.

            Que a oficina possa ser pior do que a prisão, eis aí uma opinião que justifica, sem dúvida, todos esses discursos e histórias que moralistas, clérigos e leigos destinam à juventude popular, para descrever a dignidade quase burguesa daquele que tem um bom ofício e a miséria que conduz os pequenos entregadores e vendedores de fósforos, de papel de carta e outros pequenos negócios da ponte Saint-Eustache ao abandono e à vergonha das prisões.”(1988:62)

            Que seja o roubo a rota desviante do massacre diário do trabalho. A prisão ao invés da tortura de entregar a vida vendo no futuro um destino ainda mais fugaz que a história esquartejada com cheiro de lentilha. Ou será que não?

            Será simplesmente a natureza doentia do marceneiro poeta que o faz contradizer o que aprendemos em tantas fontes: o prazer do artesão ou do operário qualificado em ter nas mãos ou diante dos olhos o produto do seu trabalho inteligente – prazer perturbado apenas pela dor de ver tal obra escapar dele par ir engordar o tesouro dos exploradores?”(op.cit.:62)

            Resta então adentrar no mundo em que se come mal, em que o dia demora demasiadamente para terminar e que adia o aparecimento do patrão até o momento derradeiro, momento em que ele faz algo que não a imaginação torpe a respeito da espera ociosa do explorador.

            No mundo às avessas que toma pelo seu reino, o senhor é antes de mais nada um barulho de passos que afasta a alma do sonho da Terra Prometida para devolvê-la ao cativeiro. Ele incomoda porque impede de sonhar tranquilamente com os prazeres dessa boa organização onde ele não tem mais lugar. (op.cit.:69)

            E então irrompe a economia cenobítica aonde, creio, será possível passear pelas figuras da idiotia proletária de anos difíceis como os de sempre.


[1] Que conta com o ideologue Constantin Volney, o exuberante suicida Walter Benjamim e o ontologista da comédia humana Giorgio Agamben, sem deixar de lado as reflexões sobre as ruínas futuras ou planificadas do nazismo de Paul Virilio (Guerra e cinema).

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A fé à pé

Caso perguntem se creio
digo que pago à vista
a forma ligeira
de não ser digno de respeito.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Religião desde a politécnica: porca e parafuso, modo de usar - Segunda Parte

Porca e Parafuso e a pragmática posta em jogo.
2-

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ELIADE,  Mircea. O sagrado e o profano : a essência das religiões. Martins Fontes. São Paulo.  1992.
GUMBRECHT,  Hans-Ulrich. A modernização dos sentidos. Editora 34. Rio de
Janeiro.
SIMONDON, Gilbert. Le mode d’existence des objets techniques. Paris. Aubier. 1969.




O que Simondon chama de organização implícita é, no mais, algo muito mais importante porque este é um traço do pensamento moderno com relação à atitude crítica, isto é, de observar a observação da mesma forma em que se organiza a organização num jogo hermenêutico de segundo grau tão bem reconstituído por Hans-Ulrich Gumbrecht (1998) sugerindo que por fim haver uma trava nos jogos de linguagem indicando haver um panorama político nas investigações de Ludwig von Wittgenstein. Assim o mundo mágico é aquele em que a mediação não está organizada nos termos de uma organização, o que implica em não estar organizada como tal. O pensamento mágico se organiza como que por efeito colateral e não por um inconsciente fisiocrata imanente. A distinção existente, a de figura e fundo é a que origina algo como “o objeto e o resto” – ou indistinto.
            Outro aspecto importante é que o mágico e o religioso coincidem porque o técnico enquanto meio demanda algum equilíbrio com relação ao religioso e vice-versa exatamente porque o religioso não é um pensamento sobre a técnica, não é informativo – e é exatamente aí que o modelo de Simondon transborda de cristianismo, isto é, afirma que a vida moral não é algo circunscrito ao mundo, assim como a reflexão a seu respeito. Estando os dois domínios apartados, fazendo da técnica o exercício “de la sortie de la religion”, recuperando a fórmula primorosa de Marcel Gauchet sobre o cristianismo, entram em cena as formas de oposição entre convergência técnico-simbólica e a divergência de mesmo tipo em que determinam forças e funções centrífugas; funções centrípetas. A convergência técnica é, por outro lado o evento da individuação por meio de objetos. E se a reflexão sobre a técnica se distingue em teoria e prática, segundo aquilo que ensina a politécnica, a religião se define por ética e dogma, o que reforça a matriz cristã do argumento de Simondon com relação à religião – a que é, talvez, a sua inimiga fiel.

            Il existerait ainsi nos seulement une genèse de la technicité, mais aussi une genèse à partir de la technicité, par dédoublement de la technicité originelle en figure et fond, le fond correspondent aux fonctions de totalité indépendentes de chaque application des gestes techniques, alors que la figure, faite de schèmes définis et particuliers, spécifie chaque technique comme manière d’agir. La réalité de fond des techniques constitue le savoir théorique, alors que les schèmes particuliers donnent la pratique. Ce sont au contraire es réalités figurales des religions qui se constituent en dogme cohérent, alors que la réalité de fond devient techniques et l’éthique issue des religions, comme entre le savoir théorique des sciences, issu des techniques, et le dogme religieux, il existe à la foi une analogie, venant de l’identité de l’aspect représentatif au actif, et une incompatibilité, provenant du fait que ces différents modes de pensée sont issus soit de réalité figurales, soit de réalités de fond. La pensée philosophique, intervenant entre les deux ordres représentatifs et les deux ordres actifs de la pensée, a pour sens de le faire converger et d’instituer entre aux une médiation. » (1969 :158)

            Não faltaria com a verdade aquele que dissesse que este esquema evolucionista cheira a Auguste Comte. Considerando que a ojeriza produzida pela dialética, ou pela teologia negativa impede que saibamos sequer como ler a obra do politécnico por excelência sem que antes o acusemos de responsável de todos os males. Ao mesmo tempo é esta mesma postura a que impede que se enxergue em eventos posteriores uma genealogia, uma relação de aliança com outros empreendimentos algo considerados como inovadores, frescos ou ao menos, criativos. Michel Serres, Claude Lévi-Strauss, André Leroi-Gourham, Bruno Latour e Jean Pouillon são somente alguns daqueles que anotam com admiração suas passagens preferidas do namorado de Marianne. O esquema  “magia-religião-ciência” presente em Du mode d’exitstence des objets techniques não é exceção, ainda seja um exercício distinto de periodização por comparação à linearidade do esquema comteano, que confunde fases com cronologia. Aqui a fase mágica não é, como se poderia esperar, a filogênese inaugurada mas um modo de individuação imanente à distinção entre figura e fundo. A fase é, assim, um momento de um sistema recíproco de fases (1969:159) independente de quaisquer definições de gênero e espécie. Uma fase é resultado de relações de força que compreendem, antes que uma dialética da superação ou uma evolução progressiva, a emergência de casos de estrutura de duas fases cujo centro é neutro cumprindo uma função de grau-zero.
            Fase e defasagem entram em questão como a mobilidade ou atualização dos modos compreendidas numa noção de evolução técnica que Simondon procura desenvolver em que procede uma concepção vitalista algo bergsoniana a partir da qual as técnicas só podem ser definidas com relação à vida que lhe anima – assim como a linguagem em certa filosofia, como a de Wittgenstein, uma ferramenta utilizada enquanto a comunicação não acontece.  O desdobramento prático-teórico em técnica e religião parte deste eixo neutro, assim como as questões para as quais podemos remeter à estética são ao mesmo tempo ruptura e busca da unidade futura do modo de ser mágico, isto é, de um modo de ser em que a convergência se dê como ponto de partida.

            “(...) la méditation entre l’homme et le monde s’objective en objet technique comme elle se subjective en médiateur religieux ; mais ces subjectivations opposées et complementaires sont précédées par une première étape de la relation au monde, l’étape magique dans laquelle la médiation n’est encore ni subjectivée ni objectivée, ni fragmentée ni universalisée, et n’est que la plus simple et la plus fondamentale des structurations du milieu d’un vivant : la naissance d’un réseau de points privilégiés d’échange entre l’être et le milieu. » (1969 :164)

3-

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Qual o tamanho do contraste deste elaboração inicial com aquela da precipitação do sagrado nas hierofanias de Mircea Eliade, um e outro orientados pela orientação e pela premissa fundamental do ser? Talvez a mesma distinção entre as noções de retroalimentação da cibernética e a de evento de ruptura no que Revelação e Revolução dividem algo mais do que uma estrutura em comum. Esta tensão merece ser aprofundada com maior vagar, até mesmo o futuro dura muito tempo e é necessário deixar aquilo que fermenta envelhecer a fim de distinguir vinagre e vinho, saliva de cerveja. Até porque certas distinções tomadas com o tempo oferecem diferenças, não de grau mas de natureza, o mesmo tipo de distingue espaço de milieu, ou ambiente como circunvizinhança a partir do qual a reticulação se oferece como um problema para a orientação enquanto tal. Mas porque Eliade no contraste? Porque Eliade disserta sobre a orientação do homem religioso, exatamente o mesmo que se recusa a orientar-se no mundo enquanto tal – e esta não é, vale dizer, uma atitude revoltada mas um tanto quanto resignada, ou mesmo amorosa.
            A tensão pode e deve ser desdobrada de uma questão importante, tão importante quanto a raridade de eventos em que é pronunciada: qual é o tamanho do mundo. De todas as qualidade fundamentais da emergência da ecologia como fronteira conceitual, aquela que oferece a herança mais perigosa é a confusão astronômica entre mundo (welt) e planeta, confusão que obrigara o relativismo – no caso de ser este agente coerente que nem mesmo uma pessoa biografada pode ser – a atingir fórmulas como “vários mundos, um só planeta” . O mundo não é o planeta, mas não por exclusão. A relação é possível, mas não é exclusiva. Um mundo não precisa ter circunscrição atmosférica, não precisa ter massa, e tampouco estar imerso numa navegação espacial em que a quantificação tenha produzido uma politécnica inédita do sonho hermético no qual aquilo que está em cima é como o que está em baixo o que e uma certa tradução enviesada pode dizer, tudo se mede lá em cima como é possível medir aqui em baixo porque o espaço é homogêneo.
           
            Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras. “Não te aproximes daqui, disse o Senhor a Moisés; tira as sandálias de teus pés, porque o lugar onde te encontras é uma terra santa.” (Êxodo, 3:5). Há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”, significativo, e há outros espaços não-sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência, amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre os espaços sagrado – o único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a extensão informe, que o cerca.” (1992:21)
           

            A experiência do sagrado precipitado em fontes hierofânicas é a precipitação da diferença qualitativa no seio do espaço homogêneo – assim como faz do homem regular, mundano, um homem de verdade fazendo de homem religioso uma forma peculiar de pleonasmo. A experiência do sagrado é a fundação do espaço em sua heterogeneidade, isto é, na composição do sentido que orienta a ação humana, orientação que o homem não-religioso recusa fazendo da tipificação uma forma de exclusão dogmática, ou daquele que não reconhece o sagrado nos termos postos. Assim, há o homem dedicado aos assuntos profanos que vive imerso no espaço indiferenciado da homogeneidade infinita purificado da religião e aquele em que vive no mundo real. Mas, é claro, esta é uma tipologia.

            É preciso acrescentar que uma tal existência profana jamais se encontra em estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o religioso.” (1992:23)

            Isto porque o mundo começa religioso e a profanação é um esforço produtivo de divórcio e, necessariamente de decaimento quando não de degenerescência. Isto porque a experiência de mundo profana (algo próximo de weltverstehen) é fragmentária uma vez que se dá em porções, incapaz de incorporar a totalidade cujo fundamento é o sentido, seja como causa, seja como fundamento, seja como finalidade. Dito de outra forma, não há Mundo que só pode ser Mundo pelo estabelecimento de uma fronteira primordial, a que cinde a homogeneidade naquilo que é a gênese da heterogeneidade da ordem espacial: o sagrado e o profano. A analogia parcial entre as habitações humanas e o espaço ritual, por exemplo, confere uma distinção importante ao entender que um templo é a forma forte de uma casa que, por sua vez, é a alternativa radical do indiferenciado selvagem da vulgata newtoniana – e aqui aparece em Eliade a voga do evolucionismo sociológico que determina, como em Durkheim, Simmel e Luhmann a analogia radical entre o primitivo e o indiferenciado.
            Este desenho é, por fim, a recuperação da dimensão técnica da arquitetura em que o espaço é recortado em espaços de relevância e habitação que instituem uma ordem transcendente que, por fim, emana dela mesmo em sinais produzindo uma analogia radical entre espaço consagrado (lugar) e cosmogonia respondendo de chofre como compreender a relação entre mito e ritual que tantas dores de cabeça causa nas pesquisas sobre religião.

            Segue-se daí que toda construção ou fabricação tem como modelo exemplar a cosmogonia. A Criação do Mundo torna-se o arquétipo de todo gesto criador humano, seja qual for o seu plano de referencia. Já vimos que a instalação num território reitera a cosmogonia. Agora, depois de termos captado o valor cosmogônico o Centro, compreendemos melhor por que todo estabelecimento humano repete a Criação de Mundo a partir de um ponto central (o “umbigo”). Da mesma forma que o Universo se desenvolve a partir de um Centro e se estende na direção dos quatro pontos cardeais, assim também a aldeia se constitui a partir de um cruzamento. Em Bali, tal como em certas regiões da Ásia, quando se empreende a construção de uma nova aldeia, procura-se um cruzamento natural, onde se cortam perpendicularmente dois caminhos. O quadrado construído é uma imago mundi. A divisão da aldeia em quatro setores – que implica aliás uma partilha similar da comunidade – corresponde à divisão do Universo em quatro horizontes. No meio da aldeia deixa-se muitas vezes um espaço vazio: ali se erguerá mais tarde a casa cultual, cujo telhado representa simbolicamente o Céu (em alguns casos, o Céu é indicado pelo cume de uma árvore ou pela imagem de uma montanha). Sobre o mesmo eixo perpendicular encontra-se, na outra extremidade, o mundo dos mortos, simbolizado por certos animais (serpente, crocodilo, etc.) ou pelos ideogramas das trevas.” (1992:41)

            A imago mundi não é, contudo, uma máquina de habitar mas uma constante na vida do homem religioso que ao habitar se orienta segundo as premissas da ordem cósmica em que habita. E orienta porque induz aos valores cuja precipitação impõe ao caos contínuo uma ordem discreta, tensão muito familiar à sociologia kantiana de fins do século XIX e mesmo ao estruturalismo do século XX, a mesma que faz conformar evolução social com diferenciação de papéis e sofisticação da organização humana. Nenhum desses temas é inexistente no trabalho de Eliade, convocado aqui como um contraponto à leitura de Simondon. A presença abreviada, contudo, não tem como objetivo diminuir Eliade posto notadamente como coadjuvante em seu próprio domínio. Isto porque a noção de reticulação do mundo tal como proposto pela fase mágica do esquema de Simondon não necessariamente oferece um modelo alternativo de religião, que é, também o que está em questão aqui. O caso é que oferece uma noção diferente de tempo evolutivo, implicando em um outro desdobramento da relação entre vida e desenvolvimento que trabalhos como Eliade absorvem, extremamente críticos ao evolucionismo como doutrina da existência ao mesmo tempo em que permissivos quanto ao evolucionismo sociológico que só faz sentido porque nada acontece senão o evento originário.

domingo, 20 de outubro de 2013

Religião desde a politécnica: porca e parafuso, modo de usar.

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GUMBRECHT,  Hans-Ulrich. A modernização dos sentidos. Editora 34. Rio de
Janeiro.
SIMONDON, Gilbert. Le mode d’existence des objets techniques. Paris. Aubier. 1969.


            O livro sobre os objetos técnicos é, se posso dizer assim, uma ontologia de função do ensemble technique (assembleia ou agrupamento técnico) relativo à infra-estrutura das relações funcionais, especialmente atento à ontogênese da técnica – uma tal ou qual determinada técnica em um quadro evolutivo geral; porque uma técnica, ou uma finalidade objetiva conduz a uma segunda e a uma terceira, etc. – e ao problema da individuação, conceito para o qual dedicou todo um empreendimento reflexivo num outro livro. Não sendo qualquer tipo de consideração sobre a representação produzida sobre o universo tecnológico e seus desdobramentos morais, o trabalho de Simondon introduz  tanto do ponto de vista descritivo quanto do ponto de vista teórico a apreciação do momento como qualificativo das relações no tempo, fazendo com que questões relativas à agência articulem nexos entre movimentos de convergência e dispersão. Este nexo sugere uma reflexão meticulosa quanto aos critérios de descrição das técnicas em sua dada função oferecendo um quadro expandido para temas caros à antropologia social, desde as técnicas corporais e usufruto de objetos à dimensões pouco usuais da vida social das coisas, permitindo compreender a vida reificada da sociedade sem que com isso seja necessário recorrer ao expediente da alienação como uma discussão protocolar.
            Sim, a remissão à antropologia social aparece como de improviso, não sendo introduzida por ninguém, muito menos pelo mesmo Simondon de quem pareço me ocupar. Mas se a antropologia social aparece como de improviso, o “social”  do antropologia não. Especialmente se for lido com o rigor caxias de um manual disciplinar. Sociedade, ao seguirmos o desenho sugerido por parte da sociologia alemã clássica (Weber, Troeltsch e Simmel) designa o coletivo reunido segundo critérios de organização social do trabalho. A colagem entre trabalho e valor, que esta mesma sociologia que tenta responder a Kant e a Marx em igual medida, divorcia ao máximo o contraponto entre economia política e religião (trabalho e valor purificados, um do outro) fazendo com que uma e outra possam se deslocar sem se forçarem em uma mesma direção mútua. Este descolamento é, quero crer, a zona em que se move a possibilidade da alienação como conceito.
            O caso é que a antropologia social tem como ferramenta de base a articulação da distinção de papéis sociais, isto é, das funções exercidas por alguém (como o ego do parentesco) com relação à totalidade das funções exercidas, totalidade esta comprometida com a reprodução social. Visto de outra forma, é a reconstituição do exercício de associação no seio da economia política do ponto de vista da sociedade. Um dos desdobramentos da distinção para  qual eu chamo a atenção está na reconstituição do que se possa chamar de organização social entendendo haver nela um núcleo estável que permita a reprodução dos papéis no tempo, intra ou intergeracionalmente. E assim, a esfera dos valores aparece como a gramática, ainda que sua conexão com os veículos de expansão seja sempre obscuro. A sociedade é algo que opera sempre por indução do agente (como na Sociologie de Simmel) ou por dedução do pesquisador (como no caso das Règles de Durkheim), mas nunca acontece, como temia Jules Michelet. Isto porque a conexão entre valores e trabalhos social (conceitos e coisa-em-si?) sempre opera em um dado paralelismo que obriga a divisão entre idealistas e materialistas em um mundo que, por fim, segue ignorando esta distinção a cada vez que algo banal e irrelevante acontece. Qualquer coisa.
            Pôr em pauta a ontogênese da técnica visa conectar o que em geral é perdido na tradução entre valor e trabalho e que não consegue propiciar de uma forma geral qualquer consideração aguda a respeito do evento, o que em antropologia é grave levando em consideração a relação com o aporte etnográfico, cuja pedra de toque é exatamente a descrição de eventos. O exercício não põe, contudo, o evento em questão.
            O aporte de Simondon é agudo ao oferecer instrumentos ao considerar, por exemplo, que tecnicidade é o emploi d’objets a partir da estruturação da resolução provisória de problemas (1969:156) e que numa mesma ordem histórica este processo evolutivo de adaptação e agrupamento técnico respeita fases – que são ordens de configuração -, tendo a fase mágica como fase inaugural.

            “(...) en prenant ce mot au sens le plus général, et en considérant le mode magique d’existence comme celui qui est pré-technique et pré-religieux, immédiatement au-dessus d’une relation qui serait simplement celle du vivant à sn milieu. Le mode magique de relation au monde n’est pas dépourvu de toute organisation : il est au contraire riche en organisation implicite, attachée au monde et à l’homme : la médiation entre l’homme et le monde n’y est pas encore concrétisé et constituée à part, au moyens d’objets ou d’êtres humains spécialisés, mais elle existe fonctionnellement dans une première structuration, la plus élémentaire de toutes : celle qui fait surgir la distinction entre figure et fond dans l’univers. »  (1969 :156)

            O que Simondon chama de organização implícita é, no mais, algo muito mais importante porque este é um traço do pensamento moderno com relação à atitude crítica, isto é, de observar a observação da mesma forma em que se organiza a organização num jogo hermenêutico de segundo grau tão bem reconstituído por Hans-Ulrich Gumbrecht (1998) sugerindo que por fim haver uma trava nos jogos de linguagem indicando haver um panorama político nas investigações de Ludwig von Wittgenstein. Assim o mundo mágico é aquele em que a mediação não está organizada nos termos de uma organização, o que implica em não estar organizada como tal. O pensamento mágico se organiza como que por efeito colateral e não por um inconsciente fisiocrata imanente. A distinção existente, a de figura e fundo é a que origina algo como “o objeto e o resto” – ou indistinto.
            Outro aspecto importante é que o mágico e o religioso coincidem porque o técnico enquanto meio demanda algum equilíbrio com relação ao religioso e vice-versa exatamente porque o religioso não é um pensamento sobre a técnica, não é informativo – e é exatamente aí que o modelo de Simondon transborda de cristianismo, isto é, afirma que a vida moral não é algo circunscrito ao mundo, assim como a reflexão a seu respeito. Estando os dois domínios apartados, fazendo da técnica o exercício “de la sortie de la religion”, recuperando a fórmula primorosa de Marcel Gauchet sobre o cristianismo, entram em cena as formas de oposição entre convergência técnico-simbólica e a divergência de mesmo tipo em que determinam forças e funções centrífugas; funções centrípetas. A convergência técnica é, por outro lado o evento da individuação por meio de objetos. E se a reflexão sobre a técnica se distingue em teoria e prática, segundo aquilo que ensina a politécnica, a religião se define por ética e dogma, o que reforça a matriz cristã do argumento de Simondon com relação à religião – a que é, talvez, a sua inimiga fiel.

            Il existerait ainsi nos seulement une genèse de la technicité, mais aussi une genèse à partir de la technicité, par dédoublement de la technicité originelle en figure et fond, le fond correspondent aux fonctions de totalité indépendentes de chaque application des gestes techniques, alors que la figure, faite de schèmes définis et particuliers, spécifie chaque technique comme manière d’agir. La réalité de fond des techniques constitue le savoir théorique, alors que les schèmes particuliers donnent la pratique. Ce sont au contraire es réalités figurales des religions qui se constituent en dogme cohérent, alors que la réalité de fond devient techniques et l’éthique issue des religions, comme entre le savoir théorique des sciences, issu des techniques, et le dogme religieux, il existe à la foi une analogie, venant de l’identité de l’aspect représentatif au actif, et une incompatibilité, provenant du fait que ces différents modes de pensée sont issus soit de réalité figurales, soit de réalités de fond. La pensée philosophique, intervenant entre les deux ordres représentatifs et les deux ordres actifs de la pensée, a pour sens de le faire converger et d’instituer entre aux une médiation. » (1969 :158)

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Da experiência como política da escrita





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BATAILLE, Georges. L’expérience intérieur. Gallimard. Paris. 2012 [1954].
______________________. Théorie de la religion. Gallimard. Paris. 2011. 
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RANCIÈRE,  Jacques. Políticas da escrita. Editora 34. Rio de Janeiro.



I-
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Bataille condena a noção de projeto, sumariamente, exatamente porque tudo o que viver produz é sua condenação explícita e eficaz. Não uma condenação de caráter jurídico, vale dizer, mas a que aponta para a danificação de uma determinada estrutura, que seja, de concreto armado que seja possível chamar de edifício. As vigas algo corroídas desde a base, rachaduras que indicam que onde reinava a unidade monolítica sobrarão pedaços desarticulados e menores que mal contarão a história do futuro que poderia ter sido. O projeto é condenado na medida em que não ofereça morada ao submeter ao habitante risco ainda maior que na vida selvagem dado que a probabilidade de ruína joga contra ele – e nada mais selvagem do que a probabilidade jogando contra. E é contra a arquitetônica, contra o grundsatz, contra o projeto a partir de um livro fortemente antipático que não aceitará a companhia estabilizadora que uma igreja qualquer. Nem mesmo a experiência mística é imediatamente bem-vinda dado que a desestabilização que promove poderá assumir a figura ou narrativa de revelação que ao mesmo tempo em que funda a relação fundamenta o discurso futuro sobre o futuro – é a fundamentação que Bataille coloca em questão. A experiência relata, não a mística ciência doutrinaria, mas o interior que até então incomunicável é posto em comunhão. O meramente idiota que falava na confusão do balbucio se presta à comunicação infantil que aponta para tudo e ri; meramente idiota, termo irredutível que resistirá à servidão dogmática porque não compreende os termos a definirem o discurso futuro sobre o futuro.
            Do lado filosófico a intenção é a de “acabar com a divisão analítica das operações e assim, escapar da sensação de vazio das questões inteligentes”. Do lado religioso, em que pesem a autoridade e os valores tradicionais – de forma alguma primeiros com relação à experiência interior – o esforço é o de fazer recuar a inteligência até o domínio que lhe parecia estrangeiro, exatamente o da experiência interior. De outra forma o livro não é senão uma introdução ao oral, a palavra que morre no momento seguinte.

            Comme une insensée merveilleuse, la mort ouvrait sans cesse ou fermait les portes du possible. Dans ce dédale, je pouvais à volonté me perdre, me donner au ravissement, mais à volonté je pouvais discerner les voies, ménages à la démarche intellectuelle un passage précis. L’analyse du rire m’avait ouvert un champ de coïncidences entre les données d’une connaissance émotionnelle commune et rigoureuse et celles de la connaissance discursive. Les contenus se perdant les uns dans les autres des diverses formes de dépense (rire, héroïsme, extase, sacrifice, poésie, érotisme ou autres) définissaient d’eux-mêmes une loi de communication réglant les jeux de l’isolement et de la perte des êtres. La possibilité d’unir en un point précis deux sortes de connaissances jusqu’ici ou étrangères l’une à l’autre ou confondues grossièrement donnait à cette ontologie sa consistance inespérée : tout entier le mouvement de la pensée se perdaient, mais tout entier se retrouvait, en un point où rit la foule unanime. » (2012 :11)

            O método da redação, intermitente e fortemente digressivo, visa dissimular o discurso à forma da comédia que fará deste livro um livro que parodia um livro e reduz o humano à ação humana, ao erro – ao equívoco que é percorrer e em fazer o que há para fazer, algo peculiarmente reincidente na precipitação do sentido na versão pragmática de felicidade. Isto porque o idiota, aquele que é sujeito às mais agressivas idiossincrasias, só pode dizer algo que se assemelha a um discurso não sendo possível levar a sério, ao mesmo tempo, o idiota e o seu discurso. Ao eleger a experiência interior como o centro de tudo o que conta é o idiota e não a mística que se professa a seu respeito – o idiota que se é; não mais o enunciado sobre o vento, mas o vento; o hálito confuso da boca de quem lambe o chão em busca de restos, migalhas de pão no monastério. Bataille é particularmente enfático quanto ao exercício da impotência na qual “si –mesmo” não é “o sujeito se isolando do mundo” sem condições de aceder à coisa-em-si mas sim “lugar de comunicação, de fusão do sujeito e do objeto” – forma de ateologia negativa em que sujeito e objeto serão o que não está lá onde há comunicação.
            Mas é isto uma política da escrita? Na verdade não imagino que a coisa possa sequer ser posta em outros termos, em especial  imaginando a trajetória anti-fascista do proponente. Mas o que seria uma política da escrita – e a volta do parafuso, para defini-la como tal eu deveria aceitar a autoridade de Jacques Rancière? Questões à parte que compõem o quadro o que é definitivamente relevante é a escrita como produção de comunidade – restando saber qual a comunidade em questão. De forma indisfarçável será preciso ler e, com algum esforço, procurar o idiota em Rancière.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

A felicidade desde um ponto de vista pragmático.


AUSTIN, John Longshaw. How to do things with words. Harvard
University Press. Cambridge. 1975 [1955]
____________________________. Sentido e percepção. Martins Fontes. São Paulo. 1993.


(leio para ver se consigo encontrar uma forma de felicidade com a qual posso lidar.)


William James Lectures em Harvard, em 1955.

Lecture I –

            Sei ter havido no seio da filosofia profissional sucessivas revoltas contra a história da filosofia, nenhuma delas suficientemente bem-sucedida para que a aquisição de um diploma não viesse às expensas de exercício do comentário filosófico, filosofia como filologia especializada. Em parte a voga estruturalista nas ciências da linguagem, que em parte a antropologia também se transformou, se permitiu participar do longo parlamento em que a ordem dos sentidos se impunham por via de alguma ordem semiológica na forma de uma legislação do sentido em que a gramática passou a ter mais de um aspecto funcional. Não somente permitia discernimento sobre a coordenação das partículas que fazem de uma língua a língua em específico como permitiriam acesso a uma meta-língua, a língua que falasse no lugar da língua em momentos específicos, como na confecção das máquinas de traduzir, hoje acessíveis por via de um google qualquer. A língua teria produzida a sua determinação auto-referencial carregando em si a chave de todos os seus procedimentos numa forma de soberania impessoal – um kantismo sem sujeito transcendental, na acusação de Paul Ricœur a Claude Lévi-Strauss. Significativamente as palestras de John Langshaw Austin não acompanham este movimento fazendo dele alguém tão fora do ninho deste tipo de empreendimento quanto o fora William James na consolidação da sociologia francesa, a pré-história desta história na qual Durkheim e Mauss dedicam um esforço considerável em barrar a influência do pragmatismo americano no milieu francês.
            Se o sentido está dado na estrutura, se a gramática contém em si os elementos fundamentais da significação, o que fazer com uma palavra de ordem? De algo que ao dizer, faça e, mesmo, faça-fazer? A constatação da dimensão performática da ordem, por exemplo, constitui o problema central das palestras de Austin em questão. Assim como o pedreiro que pede os tijolos nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein, ou nos trechos em que Humpty Dumpty define o poder de definição do sentido em Alice in Wonderland e, por fim, nas questões de uma semiótica dos mil platôs por Deleuze e Guattari. É neste ponto em que classificar a função das palavras descoladas de seu uso circunstancial faz com que certas distinções soem ociosas, confusas ou contraproducentes porque parte do sentido constituído e não da mixórdia nonsense na qual se baseia boa parte da comunicação linguística, inclusive a filosófica.

            “First and most obviously, many “statements” were  shown to be, as KANT perhaps first argued systematically, strictly nonsense, despite an unexceptionable grammatical form: and the continual discovery of fresh types of nonsense, unsystematic though their classification and mysterious though their explanation is too often allowed to remain, has done on the whole nothing but good.”(1975:02).

            O nonsense tem um impacto importante em como refletir sobre as sentenças em geral, sobre o que é aceitável como discurso especialmente quando ele não faz sentido, isto é, quando o seu componente determinante não é reproduzir a auto-referencialidade da linguagem como mecanismo de elucidação daquilo que faz. Contudo, a falta de sentido não impede que ago seja dito e que, a contrapelo, se faça compreensão – não necessariamente que o dito se faça compreender, o que é outra coisa. O que se diz não produz sentido, ao menos não sozinho. É aí que entra em cena o problema da performance.

            Along these lines it has by now been shown piecemeal, or at least made to took likely, that many traditional philosophical perplexities have arisen through a mistake – the mistake of taking as straightforward statements of fact utterances which are EITHER (in interesting non-grammatical ways) nonsensical OR ELSE intended as something quite different.”(1975:03).

            Em português o ciclo de conferências de Austin foi rebatizado. Quando dizer é fazer – Artes Médicas editora. Ainda que uma violação do título original das conferências, não deixa de traduzir muito bem o ponto de partida de Austin, dado que ele sugere haver sentenças que não são passivas de qualquer juízo a respeito de sua Verdade ou Falsidade dado que não descrevem qualquer coisa. São, ao serem ditas, ações elas mesmas: eu aceito, eu concedo, eu aposto. Seguramente que fazer as coisas por via do que se diz não implica na afirmação de uma relação exclusiva dado que a aposta muda se faz com moedas e máquinas caça-níqueis e casamentos com o mero ato de morar com alguém. E é exatamente este o ponto, isto é, sua equivalência como ação.

            The uttering of the words is, indeed, usually a, or even THE, leading incident in the performance of the act (of betting or what not), the performance of which is also the object of the utterance, but it is far from being usually, even if it is ever, the SOLE thing necessary if the act is to be deemed to have been performed.” (1975:08)

            Faz-se apelo às circunstâncias que poderia ser acusado de ser, de outra forma, uma redução às circunstâncias, o que não creio ser, digo, uma redução exatamente por não inferir qualquer dimensão a respeito da verdade ou da falsidade de uma sentença. O que fazer com questões de ordem moral, com a mentira? Austin recomenda que se preste atenção à marca de  que “acurácia e moralidade, ambas são compreendidas na frase que afirma que our word is our bond – nossa palavra é o nosso vínculo”. Mesmo que por via de uma promessa feita de má-fé que é, todavia, uma promessa, uma jura. Eu juro. E daqui já se vê que é preciso muito pouco para fazer por via das palavras – e que neste nível os critérios de verdade e falsidade não se aplicam melhor às sentenças do que em algo como um movimento em falso.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Filosofia numa cacetada (ou duas, vai). vol. 10






John Longshaw Austin




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Speech Acts Theory is philosophy with happy ending.