quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Notas do subterrâneo: uma ordem infernal


O desfecho que Koselleck dá para o seu Crítica e Crise abre uma discussão que é tão óbvia quanto pouco explorada; tão fecunda quanto de difícil articulação. Entendendo que sua história conceitual das utopias se interrompe na crítica iluminista ao Ancien Régime, a interrupção define uma marca cronológica que vai além de uma questão editorial de número máximo de palavras, quantidade de laudas, etc. Ao discutir o tipo de problema que emerge a partir de algo como a obra de Jean-Jacques Rousseau – obra citada em quase todos os manuais de civilidade publicados após a Revolução Francesa; assim, não os philosophes não eram tão lidos quanto se imaginava, dizem acertadamente Darnton , Furet e Chartier, mas eram lidos o suficiente – e a nova voga da filosofia moral, o que emerge é uma mudança de panorama da arte política e do destino da ação feita em público. Se o esforço do Estado Absolutista fora o de privar o espaço público da política restringindo a mesma ao ambiente privado, duas consequências são importantes, ao menos aqui e agora. A primeira é que todo o conteúdo da discussão política é transferido para o plano da intimidade cuja forma coletiva é o da associação livre, abrindo margem para que a vida religiosa possa ser reduzida a esta mesma dimensão uma vez que as ordens religiosas fazem parte do panorama da ação civil do período – na verdade, mais do que isso, é a escatologia que oferece a gramática do direito negativo e fundamenta o poder temporal da Coroa fazendo com que seja o centro discursivo da compreensão daquilo que é politicamente relevante. No final das contas, o estatuto da laicidade de 1904 parece ser um recurso ulterior deste processo. Uma segunda consequência diz respeito às responsabilidades da ação política, que passam a ser exclusivas do Estado, para bem ou para mal.  Desnecessário dizer que a Revolução é um movimento que identifica a Coroa e os poderes constituintes a partir da responsabilidade do ocaso das finanças , da fome e da miséria instalados na rotina francesa na passagem entre os reinados de Louis XV para o de Louis XVI. O que se dá então, especialmente após o momento da queda da Bastille é uma ação de despejo movido contra a ordem estatal, o que produz não somente um esvaziamento do espaço público, mas uma movimentação acelerada no sentido de recompor os termos e peças a partir desta novidade. E nisso, são diversas as instâncias e os efeitos produzidos pela abertura forçada. Dentre elas, em reação à miséria denunciada em panfletos e tratados os mais diversos, entra em pauta a organização social do trabalho com vistas não somente na erradicação da miséria como na produção de bem-estar, o que aos poucos se constitui em parte daquilo que veio a ser o idioma comum do socialismo francês pós-revolucionário. O caso é que a composição da noção de bem-estar social, para além de uma idéia meramente utópica participa do cenário em que noções como indústria e progresso tem não somente parte, mas servem também como elemento de realidade da temporalização que está em discussão. E é neste terreno, progressivo e industrializado que a revisão da escatologia católica entra em cena com vistas em, antes de mais nada, exclui-la da ordem pública. Resta saber o que indústria e progresso tem a ver com a reforma da escatologia, o que tem a ver com o Céu e o Inferno.
            Talvez esta pergunta ainda não seja boa, e não sei se será. Há, no entanto, outras questões que podem ser feitas para que seja possível voltarmos ao problema da escatologia e da lei de outra forma. Por acaso, e isso merece atenção, como é o inferno? Uma vez que é ele o destino da alma que não se arrepende e não acolhe em si o Amor, cabe à inteligência cristã definir da melhor forma possível aquilo que se impõe como castigo às almas pecadoras, reiterando do díptico crime e castigo como forma de compreensão da justiça – forma essa, vale repetir, que está sob sursis. Allan Kardec tem publicado no ano de sua morte o livro Le Ciel et l’Enfer no qual recusa o esforço de simplesmente extinguir o inferno fazendo menção direta ao mundo dos mortos como o faz Jean Reynaud, a quem coube também o esforço de descrever o que ele entendia ser a religião bretã antes de redigir seu adágio sobre a ordem cósmica.  Kardec põe em questão a justiça divina a partir dos termos advindos da revelação católica na qual o céu e o inferno são o final do caminho que leva à salvação e da danação. É a descrição do inferno que lhe interessa, ainda que não em seu conteúdo positivo.
            O livro que se abre com uma discussão sobre a validade do argumento moral como uma tensão entre a atividade religiosa e a atividade científica privilegiando a investigação das leis que ordenam o universo visa investigar os domínios nos quais a vida humana é posta em julgamento segundo sua atividade terreal. O que Kardec ambiciona, à semelhança de Reuynaud, é apresentar o descompasso entre a investigação das ciências experimentais com relação às doutrinas religiosas, com ênfase especial no que propõe a teologia católica. Assim, a doutrina religiosa tem valor na medida em que acompanha o progresso da inteligência cujo reduto está nas investigações da natureza das coisas, suas leis e a implementação no melhoramento da espécie. A religião como tal deve ser uma obra aberta às descobertas que a ciência produz, não somente respeitando mas prestando serviço às leis do progresso. Disso implica uma forma particular de relativismo historicista no que diz respeito à história da moral e do direito. Ainda que introduzida por via da revelação, cujo evento é o advento messiânico de Moisés e de Jesus Cristo, a mesma revelação é, via de regra, incompleta uma vez que não produz, para além da perfeição do comportamento moral, uma forma clara e distinta de conduzir a humanidade na trilha do aperfeiçoamento. A tarefa que o espiritismo se impõe é a de preencher essa lacuna e introduzir novas diretrizes a partir da tensão que a mesma dialética entre ciência e religião produz.
            Partindo de um comparativismo tão ligeiro quanto questionável quanto à derivação do inferno cristão daquilo que é o inferno pagão aonde figuram um sofrimento inimaginável e eterno em que o fogo se mostra como agente maior da dor, o passo seguinte está e sugerir algo verdadeiramente mais sutil com relação ao inferno, ambiente a ser extinto da escatologia e, por esta mesma via, do direito. Assim, temos em mãos um trecho do livro de Auguste Callet sobre o inferno que serve de base bibliográfica para Kardec. Um determinado trecho do mesmo, que descreve a relação entre os demônios o inferno causa estranhamento particular no autor de Le Ciel et l’Enfer.

            “Aucun démon e se rebute et ne se rebutera jamais de son affreuse tâche ; ils sont tous, sous ce rapport, bien disciplinés, et fidèles à exécuter les ordres qu’ils ont reçus ; sans cela, que deviendrait l’enfer ? Les patients se reposeraient si les bourreaux venaient à se quereller ou à se lasser. Mais pont de repos pour les uns, point de querelles entre les autres ; quelque méchants qu’ils soient, et quelque innombrables qu’il soient, les démons s’entendent d’un bout à l’autre de l’abîme, et jamais on ne vit sur la terre de nations plus dociles à leurs princes, d’armées plus obéissantes à leurs chefs, de communautés monastiques plus humblement soumises à leurs supérieurs (1) »//Nota : « Ces mêmes démons, rebelles à Dieu pour le bien, sont d’une docilité exemplaire pour faire le mal ; aucun d’eux ne recule ni ne se ralentit pendant l’éternité. Quelle étrange métamorphose s’est opérée en eux, qui avaient été créés purs et parfaits comme les anges !//N’est-il pas bien singulier de leur voir donner l’exemple de la parfaite entente, de l’harmonie, de la concorde inaltérable, alors que les hommes ne savent pas vivre en paix et s’entre – déchirent sur la terre ? En voyant le luxe des châtiments réservés aux damnés, et en comparant leur situation avec celle des démons, on se demande quels sont les plus à plaindre : des bourreaux ou des victimes. »(1869 :58)

            Eu poderia declarar surpresa com esta passagem, na medida em que, recentemente, Giorgio Agamben faz a mesma ressalva com relação à ordem do inferno, à precisão burocrática com que o mesmo opera e em como, a partir de um determinado momento da cristandade é o diabo quem é descrito com maior rigor, desde Sto. Tomás de Aquino, como a figura da eficiência governamental no mundo. É esta mesma noção de ordem na qual o inferno opera é que causa estranhamento e um certo desafio no ato de justificar, isto é, como compreender e responder ao desafio de que o mal na terra opera como o Castigo, correspondendo tão pronta e cuidadosamente aos desígnios da providência? Porque assim, o diabo não seria, não poderia ser somente o manipulador com fins de aquisição de almas, mas seria ele mesmo uma peça do governo do mundo cumprindo seu papel na ordem cósmica como, segundo Raïssa Maritain define, o mais baixo da mais alta hierarquia lidando imediatamente com os mais altos da mais baixa hierarquia. 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Notas do subsolo: o pensamento selvagem.


               Imagino que o clichet me serve muito bem, o mesmo que reforça uma certa identidade entre as pesquisas em antropologia com o tipo de pensamento e população residentes em espaços selvagens. Jogados em meio ao verde opressor de uma paisagem úmida e quente de uma floresta tropical, ou com as narinas soterradas de poeira jogadas pela última ventania da savana africana, antropólogos devem saber que a razão não é o bastante. Devem saber que há mais do que sonha a vã-filosofia, e que ainda que não se saiba, há vida selvagem, há povos selvagens, há a selva. No caso, e permito-me abusar da má imagem, a selva serve como pictograma do risco e do informe, assim como da plena potência que torna presentes toda sorte de impotência do pesquisador que não sabe caçar, que não sabe o que fazer e o que não fazer numa roça, e que sequer sabe aonde pode fazer seus despejos fisiológicos sem correr riscos mais severos, dentro ou fora da natureza selvagem. Este momento em que a nudez e a mudez não é indígena, mas da impotência da ação premeditada pode ser traduzida, ainda que em má tradução, para a perda de referenciais e, de outra forma, o excesso de sinais que a situação selvagem oferece.
            Quando nos afastamos do clichet, mas não muito, é possível perceber que o selvagem tem outras extensões, e que estas extensões pertencem à selva que não é, necessariamente, silvícola. É importante ressaltar que, todo este tempo, a natureza do selvagem será relativa a um momento, a saber, o momento em que se está perdido. Peter Gow, antropólogo britânico que fez campo entre os Piro (população do Peru amazônico) escreveu um artigo para uma coletânea sobre antropologia e paisagem. Escreveu o quanto pode ser inútil estar bem preparado para transitar floresta adentro. O quanto um sistema cartográfico que alia notas de um ponto de vista aero-espacial, que é o mapa, com um sistema de orientação de pontos de referência completamente dependentes de coordenadas disponíveis num sistema visual de tipo landscape se transforma em peso morto quando se chega a uma floresta amazônica cuja densidade verde não lhe deixa enxergar sequer 10 metros adiante e, pior, a confusão de tons, sombra e movimento não permite que se faça a distinção de figura e fundo violando dimensões imprescindíveis para a orientação planejada. Mapa, bússola, sistema de coordenadas, os piro com poucas roupas e o antropólogo nu.
            Mas o selvagem não é o selvagem. Isto é importante. De acordo com uma certa sensibilidade com relação à qual procuro me aproximar lentamente – confesso que estou um tanto quanto perdido -, o selvagem não é alguém. A segunda cena tira a selva da cena selvagem. Estarei mais próximo daquilo que preciso dizer sem atropelar a sensibilidade de mais ninguém, fazendo com que alguém além de mim se sinta perdido enquanto lê o que escrevo; ouve o que falo. Para o leitor menos afeito às aventuras selvagens da atividade etnográfica, o segundo exemplo nos leva imediatamente à Paris e ao parisiense. Em seu ensaio Die Groß Städte und das Leben des Geistes, Simmel faz uma reflexão afinada com a perda das relações de referência que permitiriam a orientação espacial exatamente pela relação fina entre ter e estar perdido, o que culmina num excesso de sinais como consequência. A cena hipotética, e que imagino ser uma articulação sociológica de algo próximo de seu “eu-lírico” é a aparição de alguém que nunca esteve em Paris se vendo diante do espetáculo de luz, som, cor e movimento da Avenue Champs Elysées, por exemplo. Não estou seguro se a cena é necessariamente esta, mas como minha memória me trai e não ressinto, prossigo.
            O caso é que o ambiente produz efeitos. No caso, o de desorientação. Ainda hoje a diferença é flagrante. Alguém nascido e criado numa vila como qualquer uma ao redor de St. Brieuc que tem como orientação espacial algo simples como “linha do horizonte” e mesmo “poucos corpos similares ao seu em movimento ao redor” se vê num impasse que é algo muito similar ao impasse do número assombroso de pessoas atropeladas por carros no anos 1920-30 simplesmente porque não tinham como calcular – calcular é força de expressão – a velocidade daquilo que se movia em sua direção. Paris não oferece muitos pontos de fuga que não sejam boulevards e, quando oferece, se está num ponto muito alto, ou muito baixo o que é forte indício que está perdido há algum tempo. Simmel, obviamente, vai além. O que ele enfatiza é que o mundo parisiense, cheio de lojas, vitrines, panneaus , música, gente, movimento, oferece uma variedade de sinais tamanha que o efeito ambiental obrigatório é a perda de orientação, o que faz ser obrigatório para aquele que lá (aqui) vive o desenvolvimento da conduta blasé, isto é, que consegue se pôr indiferente à maior parte dos sinais e conseguir se ater ao mínimo relevante para a circulação. Aquele que acaba de chegar à Champs Elysées está, via de regra, perdido. Não encontra as referências fundamentais que lhe fazem intuir ser quem é e, em troca recebe um excesso de sinais que só lhe farão, em um primeiro momento, um paranóico potencial ou mesmo, iniciante.
            Como não traçar uma analogia entre o que descreve Peter Gow e Georg Simmel? Digo, assim reduzidos ao que interessa às notas que redijo, a relação parece clara porque o selvagem parece irromper neste duplo movimento entre a perda de referenciais seguros e um excesso que se impõe imediatamente. Obviamente que não quero dizer que isto é universalmente o que deve ser entendido como selvagem, mas como aquilo que nestas notas quero definir como sentimento diante do selvagem que, de outra forma pode ser definido por uma palavra somente: vertigem. O selvagem aqui será o que causa vertigem. E só.
            Seguramente que com relação ao selvagem que causa vertigem, coisa que nas linhas de Casa Grande & Senzala significa bem outra coisa, há uma outra dimensão importante que serve tanto como antecedente do problema como uma analogia importante que vão se encontrar, a dimensão e a analogia, no mesmo lugar. Quero dizer que a vertigem aqui precisa ter alguma relação como o transporte – que no  francês transport significa um modo de transe extático sobre o qual há muito o que considerar. O que por ora posso fazer é meramente exercitar o pouco que sei e imagino para que uma coisa e outra venham a ter algo mais do que um sentido improvisado. O que busco, e tenho pretensões propriamente historiográficas, é articular o improviso com a harmonia – nem tanto à moda de um trompetista como Boris Vian, mas mais atento aos vôos agudos soltos pelo sistema solar de Charles Fourier.
            Porque eu posso dizer que de St. Andrews, Escócia até a Amazônia peruana, Peter Gow fora transportado. O mesmo vale para a cena de Simmel na qual o sujeito que sofre dos efeitos de Paris fora quase que teletransportado, dado o começo abrupto da cena em que o sujeito não chega até Paris, mas está lá desde então. Mas o transporte em matéria experimental é exatamente uma das variações com relação à vertigem. E aqui eu precisaria começar a escrever tudo de novo.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Notas do subterrâneo: vôo cego


[NATHAN, Michel. Le ciel des fouriéristes: habitants des étoiles et réincarnations de l’âme. Presses Universitaires de Lyon. Lyon. 1981.

NOTA: O caso dos Vespertillos. Seres lunares vistos segundo relato publicado por um chefe de expedição inglesa ao Cabo da Boa Esperança e que causou alvoroço, além de diversas acusações como as que censuraram os astrônomos do observatório de Paris por não os terem descoberto antes. A crise de credibilidade com relação aos primeiros observadores se desdobra na crise de credibilidade dos primeiros relatos da parte dos mesmos observadores que, num segundo momento, contestam a existência dos Vespertillos, cuja figura é tratada como mistificação. Ainda que a existência de vida na Luz tenha sido descartada a partir de novas investigações, o conde Fœlix em seu livro Astronomie des dames [1858] discute a dificuldade de fazer compreender que a novidade era falsa. Havia por fim quem persistisse em fazer menção aos Vespertillos como se de fato habitassem a lua (Nathan, op.cit.:73-74).

            O caso dos Vespertillos, e os termos a partir dos quais o conde Fœlix tece suas considerações são importantes a esta altura porque desenham com alguma clareza o dilema entre o fato que é de fato, e os fatos que são reconhecidos como crença e mistificação, um e outro vizinhos semânticos muito próximos. A experiência mística, se posso reconstituir de memória diz respeito a uma relação direta com o sagrado em que o caráter de símbolo (Turner; Langer; Black), ou de orientação (Eliade) se impõe a um sujeito, ou a um coletivo cuja irradiação se faz impossível de comunicação mediatizada, isto é, é possível comunicar que algo tenha ocorrido sem que os termos de comunicação permitam repetir ou estabelecer a repetição do evento que é, de qualquer forma, autônomo. A mistificação de um fato, entendida segundo este tipo de acusação diz respeito à dificuldade de um determinado agente em enunciar um evento de forma que, ou seja possível reproduzir o evento segundo suas variantes experimentais, ou que seja possível de outra forma visitar o evento in natura. De outra forma, diz respeito aos existenciais não passíveis de transmissão por via de um mediador. Não à toa, não são somente as instituições científicas que controlam sobremaneira a experiência mística, dado ser esta uma das especialidades da igreja católica que é, para todos os efeitos, também fortemente dependente dela.
            Uma vez compreendido que o caso dos Vespertillos evoca este limite da linguagem como tal, ela evoca também uma determinada economia de objetos, isto é, um conjunto de afirmações, técnicas e eventos que são passivos de apreciação segundo aquilo que se apresenta como uma economia do problema. A crença, isto é, o crédito opera na chave do improvável, ou daquilo que, não sendo  reificado, não participa da economia geral tendo sua participação apenas sugerida, não sendo constituinte da ordem das trocas entre entes de existência atestada. Perguntar se alguém acredita ou não acredita, ou lamentar a insistência em crer é, por fim reiterar as interdições deste tipo. Assim, reduzida à crença o que a noção de história evangélica oferece como movimento contrário às acusações ateias de certos agentes científicos, ressaltando certos evolucionistas em voga desde Thomas Huxley, é reduzi-los – como o faz parte significativa da filosofia da ciência, vale notar – ao estatuto da crença que não somente os desautorizara outrora, mas como o segue fazendo. Esse tipo de reação recebe, via de regra, o nome de “abraço do afogado”.

          O caso é que Vespertillos são seres alados e que, de uma forma geral correspondem aos mamíferos voadores que em geral conhecemos como morcegos. É assim, ao menos segundo uma determinada taxinomia, porque há também a contra-referência angélica da qual não somente não podemos nos livrar, como oferece uma chave de leitura importante, que remonta à ciência dos anjos e o tipo de comunicação direta sugerida por Swedenborg, apelidado por alguns como “turista do além”. A descrição dos seres lunares como dotados de asas e, ao mesmo tempo, como similares parciais à espécie humana oferecem margem para investigações mais detidas, ainda que propriamente eivadas de uma certa ironia pelo ajuste plástico-taxinômico que a descoberta científica oferece. O caso lunar segue sendo, contudo, algo mais volumoso que o problema da identificação dos Vespertillos, o que oferece por sua vez uma forma de distinguir os fourieristas de fato de outra sorte de amadores. Ao menos é  que nos promete Michel Nathan no início do capítulo três, o mesmo capítulo que oferece o seguinte levantamento relativo aos anos 1830 franceses:
            “Il parut en France, tant à Paris qu’e province, trois sortes d’opuscules : des brochures d’une quinzaine de pages évoquaient rapidement les paysages lunaires, leur faune et leur flore, puis leurs étranges habitants tandis que d’autres brochures donnaient en 150 pages environs des détails techniques sur les conditions de l’observation qui venaient s’ajouter aux détails pittoresques. D’autres brochures enfin se perdaient en variations sur les coutumes Sélénites.
            Tous ces ouvrages se présentent comme des traductions et commencent par décrire plus ou moins longuement le fameux télescope. Puis viennent les sites pittoresques, les cavernes, les précipices, les améthystes énormes, les amphithéâtres de rubis, les cascades d’argent, les montagnes couronnées d’or. Parmi une végétation luxuriante vivent des animaux fabuleux : moutons, bisons qui portent au-dessus des yeux une visière de chair pour se protéger du soleil, licornes aux allures de chèvres facétieuses, castors de génie. Les créatures les plus intéressantes sont évidemment les Sélénites. Les premières brochures ne parlent que des Vespertillos, hommes chauve-souris, qui s’ébattent tranquillement. Mais les brochures un peu plus tardives instaurent une véritable civilisation lunaire fondée sur l’esclavage et une religion cruelle. Sont ainsi décrits dans les éditions de 1836 la physiologie des Sélénites maîtres de Vespertillos, leurs habitations, leur art de la guerre, leurs cérémonies nuptiales et l’hommage qu’ils rendent à leur Dieu. » (Nathan, op.cit. :74-75)
            O nome de John Herschel como o principal divulgador destas descobertas, tendo sido ele mesmo um dos observadores dos fenômenos lunares, serve de guia para este tipo de investigação. O mesmo d’Herschel é repelido por figuras como Jean Reynaud em um artigo de 1836 do Magasin pittoresque. É de Reynaud a acusação de mistificação, em primeiro lugar. Arago fizera o mesmo em uma intervenção da Académie des Sciences cuja apreciação geral se encontra no Journal de Débats no número de 19 de novembro. Consideram, Reynaud e Aragon, um absurdo a descrição oferecida por Herschel, a de que a escravização de uma raça por outra, dos Vespertillos por Sélénitas, simula um espelho ruim daquilo que porventura poderia se encontrar na terra. A figuração da tirania em solo lunar reflete, por outro lado, uma variação peculiar de orientalismo – naquele em que, na perda de referenciais espaciais produzidos pela vertigem do espaço infinito, o oriente aponta para cima – ou A Lua vem da Ásia.