segunda-feira, 27 de junho de 2011

"Quando vou escrever, e sei que é a hora, me sobe a claustrofobia de estar aqui dentro e me afobo."



Ecuménico Fizsco

Os que estão para morrer











ou Kirk Douglas.

Recentemente. Há quem diga que há uma injustiça em curso. E que mesmo o espiritismo que rejuvenesce os cofres cinematográficos e reconstituem a pauta, meio desmilingüida da caridade, se esforça por manter subterrâneo, a sorte de ostracismo dos mortos da pátria. Ainda que sejamos inculcados por uma forma peculiar de imaginação perversa, como a verve anarquista de antropólogos de agora fazem por bem, e por vezes, ressaltar, imaginamos os mortos vivendo a boa vida. Isso acalma. Nem sempre isso é bom. Afinal, há aqueles para quem a morte implica em outra coisa e, mais, em quase nada.












Há quem me fale de Macabéia, de A hora da estrela. Há quem diga ser condição mais geral, abrangente e ofensiva. No diário de Lúcio Cardoso, em 14 de agosto de 1949, lemos: Na expectativa do trabalho. Numa tranqüila manhã (odeio essas inversões que adjetivam o substantivo; não vejo, salvo exceção, quando é que a tranqüilidade é sobredeterminante quando o ponto versa sobre marcadores temporais), de sol violento e frio, regressando da missa numa pequena capela erguida num outeiro sobre o mar – o poder, a verdade dessa vista de cartão-postal! – reparo as pessoas que passam em roupas de banho e trajes esportivos, ávidas de gozarem a delícia da manhã. E é estranho constatar como parecem deslocadas na harmonia do ambiente, muito gordas ou muito magras, com roupas exóticas e evidentemente mal-feitas. A tristeza, a miséria da carne humana é tão visível, que chega a me causar uma espécie de mal-estar. Na radiosa manhã são quilos e quilos de ambições e sonhos frustrados, de matéria sequiosa queimada pelos desejos mais disparatados, pela gula e pelo egoísmo, que se arroja cega pelas estradas, em automóveis, carroças e bicicletas, tudo enfim o que mais confortavelmente pode transportar essa massa condenada em sua sôfrega busca de esquecimento.

A carne quantificada caminha objetivamente. A paisagem é mais generosa que o cenário triste e rame-rame da odisséia pobre de Macabéia. Na verdade, é mais generosa porque é uma paisagem, e já não há drama e sim uma marcha, como a que encaminha a vaca para o brejo. O cartão postal, todavia, não é decadente. Disto implicaria um juízo moral que, ainda que apareça, não é a fonte do juízo mesmo. O que desenha a figura é a carne que busca o esquecimento – cuja fonte e direção não se dizem. Ser esquecido ou esquecer, neste caso, indifere. Dá no mesmo. O sentido providencial da sentença rumina o mesmo rumo que Lawrence Ferlighetti dá em seu The Old Italians Dying que por anos têm morrido por toda a América. Por anos os italianos velhos vêm tomando sol e morrendo, dia a dia. They are almost gone, now/They are sitting and waiting their turn and sunning themselves in front of the church/ over the doors of which is inscribed/ a phrase which would seem to be unfinished/ form Dante´s paradise/ about the glory of the One/ who moves everything…/ The old men are waiting/ for it to be finished/ for their sentence on earth/ to be finished(…). Ainda que pese o peso da espera, há na velhice marcada pela imobilidade da paisagem na qual lhes resta a marca de amantes – de Mussolini e Garibaldi – e sua forma essencial do odor – alho e pepperoni, ambos exalados por bocas dentadas em cor-de-milho -, com os olhos cotornados por sombrancelhas selvagens; há na velhice a forma chave de petrificação pela autoconsciênscia de que o tempo, este já se foi, e que estamos em tempo de partir com ele. E não estou falando de uma viagem qualquer. E tornar-se quase-pedra antecede o momento de dissolução pelo fim, que é o mesmo que finalidade, cuja marcha está precisamente marcada pela pequena turba do cartão-postal, o outro, à beira da praia no diário de Lúcio Cardoso, de quem diariamente nos esquecemos. Como fazemos com todos e tudo, afinal.


















O outro mundo é aqui. Mas daqui a pouco.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

01 ao pé da página

Gostaria de registrar isto. Isto mesmo. “Isto”. Isto é, antes de qualquer outra coisa, escrito. Na verdade, riscado, desenhado, configurado em pixels e binarismo, mas isto está escrito. Não recomendo literatura, não figura prosa, não culmina em verso. Ao menos não até ser tarde demais. Não está confuso, não é torto, não demanda paciência. Está um passo atrás – e não um passo à frente. Isto não conta com estofo, não fornece grandes linhas porque é pobre, menor, e desavisado. E tropeça. Não se filia, é meio adotado, não encontra linhagem e, ainda assim, não produz inovação ainda que composto num parque tecnológico. Não sendo apologia a Magritte, isto é assim mesmo. Mas ainda assim, tão pouco, tosco e primário, desajusta. Ficamos assim. Pode ser que aconteça, pode ser literatura de ficção, poema, ensaio ou algaravia. Mas o será, caso seja, se for, quando for tarde demais.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Meu Avô






Cresci já faz um tempo e, não tarda muito, começo a encolher os centímetros que a velhice toma para si e esconde no bolso de trás. E, confesso, tenho torcicolo procurando orientação num momento como este, porque não tive avô. Quero dizer, tive. Dois. Um, avô natimorto. O outro, distante nas Minas Gerais, aparecia em refúgios temporários para tomar café na varanda, comer mamão com aveia de manhã e partir em meio às histórias da linha telefônica que conseguiu com minha avó, não a casada com ele, sem nunca ter pago. Sabe, linha telefônica, nos idos anos 60 custava o mesmo que dar entrada em apartamento. Num vai e vem periódico, meu avô não foi aqui.

Mas eu passei muito tempo ligado em televisão, de mil e uma formas e, ainda há pouco, percebi que estive na boa companhia de um velho durão, mas gentil nas horas e formas mais adequadas, e que me convenceu que há variedade do lado de lá. Este, por fim, faz quadro a quadro a coletânea de todos os sexagenários que me deram as mãos em momentos descolados entre si, e que só tem em comum a minha memória. Assisti a Gran Torino e vi que Clint Eastwood é o avô que eu não tive. Não Clint, mas nos quadros em que aparece, aos poucos, como Walt Kowalski et al. As lágrimas que não perdi até então com a velhice viril dos avôs que mal tive devem rolar em pouco, me diminuindo o volume e me fazendo, um pouco menor, um pouco mais velho.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Proto-história positiva de umas coisas aí.

Porque parte da história narrada pelo ponto de vista progressivo - e positivo, mais de bem com a vida, e entusisasmado com as propriedades mnemônicas da vida coletiva moderna, tem o hábito de narrar o progresso segundo a chave de como chegamos até aqui, e como foi chegarmos até aqui. Daí a pergunta cética: "Chegamos? Chegarmos?" - do tipo que acha engraçado quando dado time termina bem uma partida e um torcedor, em frente ao seu televisor, sussurra: "Ganhamos!". A história do progresso me soa, por fim, a uma grande torcida fazendo !Hola!.






(entenda-se bem que não tenho time de futebol, mas em filosofia da história, eu sou botafoguense.)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Via de mão única

"Ficou combinado que minha mãe me guardaria os sacos que serviam para embrulhar os cereais que ela comprava. Ah! com que entusiasmo, voltando para casa, à noite, eu explorava esses tesouros dados como restos de discursos, como fragmentos de anais! E com que irritação chegava ao final da página rasgada sem prosseguir a narrativa, que nunca continuava na entrega seguinte que minha mãe me fazia em forma de sacos ou canudos, embora lhe tivesse recomendado para trazer as lentilhas sempre do mesmo comerciante."









retirado de "A Noite dos Proletários - arquivo do sonho operário", de Jacques Ranciére, no capítulo em que disserta sobre a descoberta da leitura por quem não deveria, ou não poderia, por via de embrulhos de jornais (Goscinny & Uderzo escreveram que os peixeiros foram os primeiros advinhos ao lerem, não nas tripas, mas nas embalagens de jornal, as novas do cosmos) ou maiêuticas de mão única.

Com a mãe.





Ranciére recupera histórias de mães que não sabem ler e que, ainda assim, ensinam seus filhos a dar seus primeiros passos na República - ensinamentos da mãe claudicante. Proposta de um esforço fora do sério, e que sabe, quando sabe evadir, promove uma ou duas mil pequenas reviravoltas na vida de alguém.





Rompido o cordão umbilical do tipo romance, encaixado em versos do bom e velho Miguel Torga, o mesmo narra já em Coimbra, em 3 de stembro de 1941, um determinado envio. Correio.

"Carta de minha Mãe./quando já nenhum Proust sabe mais enredos,/ a sua letra vem/ a tremer-lhe nos dedos.// - "Filho".../ E o que a seguir se lê/ É de tal pureza e de tal brilho,/ que até da minha escuridão se vê."